São 14 contos. Ou 14 socos curtos, desferidos na boca do estômago, sem a menor compaixão, para machucar mesmo. O próprio título do livro mais recente de Rubem Fonseca, o 20º de sua carreira, Secreções, excreções e desatinos (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 21), sinaliza seu conteúdo. São odores, texturas e gostos sentidos pela proximidade e pelo tom invasivo característicos de Zé Rubem, um íntimo das minúcias do corpo humano. Mas entrar na barra-pesada da escatologia é algo que muitos duvidavam que ele um dia se dedicasse. A começar por sua personalidade reclusa. Em Copromancia – palavra inventada pelo autor – o protagonista é preocupado em catalogar as próprias fezes. Aroma cactáceo fala do hálito feminino, e por aí vai passando por flatulência, tumores, esperma, cera de ouvido, saliva, suor. Como sempre, no texto-facada de Fonseca, o gesto amoroso ou é unívoco, ou mal interpretado, ou esconde uma intenção egoísta, não raro malévola. É a volta de Rubem Fonseca a seu mundo de obsessões, inexorabilidade e cheiro de morte, depois da aventura lúdica de O doente Molière, escrito para a coleção Literatura ou morte.

Mineiro de Juiz de Fora, carioca por adoção, o escritor é cercado por muitas lendas. Uma delas conta que teria ajudado a organizar o arquivo do Serviço Nacional de Informação (SNI), ou que seria médico legista, daí a intimidade e o despudor em descrever vísceras e estômagos perfurados. Com mitos ou não, o autor continua dominando a escrita com a mesma maestria que o protagonista de A grande arte – um de seus melhores livros – manejava as chamadas armas brancas. Página por página, ele se encarrega de levar o leitor pela mão, conduzindo-o por ambientes invariavelmente sórdidos, apresentando-o a personagens dos quais jamais alguém se aproximaria em sã consciência, sem precisar recorrer a enciclopédicas descrições tão comuns em livros do gênero. Fonseca instaura o mal-estar valendo-se exclusivamente da precisão cirúrgica de suas frases. Um estilo cultivado desde 1963, ano de sua estréia com Os prisioneiros, seguido por compêndios de morbidez, como A coleira do cão (1965), Lucia McCartney (1967) ou Feliz ano novo (1975), considerado um dos símbolos de resistência à ditadura, devido à proibição pela censura na época.

A visualização sugerida por suas obras pode ser medida pelo crescente interesse por parte da televisão e do cinema. Agosto (1990) foi transformado em minissérie produzida pela Rede Globo, o citado A grande arte ganhou as telas por Walter Salles, Bufo & Spallanzani (1986) está prestes a estrear sob a direção de Flávio Tambellini e O caso Morel acaba de ser roteirizado pela escritora e discípula Patrícia Melo. Quem se habituou ao estilo de Fonseca, no qual nem sempre o mordomo é o culpado, mas o leitor é invariavelmente a vítima, talvez estranhe os finais felizes de alguns dos contos, as concessões feitas pelos personagens e o número de sobreviventes e conformados. Mas não vai ficar indiferente ao clima absolutamente perturbador do livro, que poderia receber o nome de um dos contos apresentados: A natureza, em oposição à graça.