Três minutos foram o tempo necessário para que agentes do Serviço de Imigração americano, numa operação com subtons militaristas, arrancassem o menino náufrago Elián González da guarda de seus parentes em Miami e o pusessem a caminho do reencontro com o pai, Juan Miguel, em Washington. E este é o único ponto de concordância sobre os fatos ocorridos a partir das cinco horas da manhã de sábado 22, em Little Havana, o bairro cubano de Miami. A novela do menino refugiado de Cuba e encontrado amarrado numa câmara de pneu nas águas da Flórida no último Dia de Ação de Graças, há quatro meses, difere muito dependendo do narrador. Quando contada pela comunidade cubana exilada, a história tem nuances melodramáticas – ao modo dos dramalhões da escritora Glória Magadan – e é recheada de perfídias cometidas por governos autoritários. Já na ótica das autoridades dos Estados Unidos, o enredo ganha certo brilho clássico de Hollywood, onde não faltam as cenas de ação dos filmes de Bruce Willis, nem o final feliz da reunião de um pai com seu filho perdido. Este conflito de interpretações é decorrência de duas visões de mundo absolutamente distintas. De um lado, está a maioria do público americano (70% aprovaram o resgate), com seus conceitos próprios de democracia e respeito às leis. Do outro, está uma comunidade insular, naquilo que se pode chamar de “República de Miami”, um país virtual que funciona independente e às turras dentro de outra nação.

A igreja “Ermita de la Caridad”, em Biscayne Bay, foi construída de modo que suas portas estejam voltadas para Cuba. É lá que se congregam os devotos da comunidade cubana. Num dos altares está uma virgem vestida com os paramentos rebuscados das quinceañeras, as debutantes caribenhas. A seu lado alguém colocou um pôster do “Niño milagro” – Elián – e, sobreposto a seu peitinho, o coração de Cristo, sangrando com os ferimentos da coroa de espinhos que o abraça. Elián é chamado de Menino Jesus pelos locutores da rádio WQBA, La Cubaníssima. Doña Caridad, a matriarca dos González em exílio, olha compungida para a figura e diz: “Es triste.” A família voou para Washington para tentar rever o menino. (Elián espera, agora junto ao pai, em Maryland, a decisão de uma corte da Geórgia sobre um pedido de asilo político e não poderá sair dos EUA até que o caso seja julgado). Caridad é a única González na igreja para a missa do dia de greve contra a ação de resgate efetuada pelo governo. Na terça-feira 25, quase todo o sudoeste de Miami ficou deserto com uma paralisação convocada pelas 27 mais importantes organizações de exilados cubanos. “Deus vai fazer o milagre completo e trazer de volta nosso Menino Jesus”, garantiu para ISTOÉ Doña Caridad.

O clã Canosa – Nesta mesma igreja, no último dia 17 se comemoraram os 39 anos da malograda invasão da Baía dos Porcos. Nesse dia, em 1961, uma expedição de exilados cubanos, com apoio logístico do governo americano, tentou penetrar em Cuba com uma brigada chamada 2506. No imaginário popular de Little Havana, a culpa da derrota coube ao presidente John Kennedy, que negou o auxílio aéreo esperado pelos invasores. E essa suposta traição veio servir para o rompimento com a cidadania americana e como pedra fundamental do ideário da “República de Miami”.

O empresário Jorge Mas Canosa era uma espécie de presidente local. Ele foi o fundador e líder da Fundação Cubano-Americana, o maior grupo anticastrista e ultradireitista operando em Miami. Seus dias de glória se estabeleceram desde que Ronald Reagan foi eleito presidente e empossou Canosa extra-oficialmente como especialista em assuntos cubanos na política externa americana. Jorge Santiago, empresário ligado ao Movimento Democrático Cubano, mais moderado, diz: “Desde a época da guerra de independência os exilados coletam fundos em Miami para sua causa. Mas Canosa elevou isso a uma arte. Ele arrecadava dinheiro do governo, de empresários, trabalhadores e até junto com a coleta da igreja. Uma verdadeira extorsão: quem não concordasse era tachado de comunista. Isso lhe valeu combustível para montar uma máquina que sequestrou o poder político neste Estado.”

Ironia do destino, Canosa, que vivia anunciando a morte iminente de Fidel Castro, acabou morrendo antes. Deixou como herdeiro seu sobrinho Jorge Mas Santos, que, apesar de muita disposição direitista, não tem o mesmo carisma e mão-de-ferro do tio. “Era preciso criar um fato político galvanizador, ou a Fundação Cubano-Americana se tornaria irrelevante. Foi aí que acharam Elián”, disse a ISTOÉ Manolo González, tio de Juan Miguel e que discordou das ações da família em Miami. El niño Milagro, na verdade, operou o milagre da ressurreição da Fundação.

A jornalista e socióloga Joan Didion explica o modus operandi desta nação virtual. “Alguns membros da brigada 2506 vivem em Miami desde muito antes de Fidel Castro entrar em Havana. Outros chegaram em 1980 com o êxodo que saiu do porto cubano de Mariel, os chamados ‘marielitos’. Alguns até são cidadãos americanos, outros nunca o serão, mas todos são antes de tudo cubanos. Só que cubanos vivendo numa espécie de limbo do exílio, desconectados da realidade americana. Eles se comportam com se estivessem num transe coletivo, forjado por uma rede de ressentimentos, vinganças e tabus. O ideário da comunidade é calcado na autocracia que moldou a história de Cuba.”

A analista parece estar certa, dadas as evidências que se vêem nas ruas de Little Havana. Na terça-feira 25, a sra. Rachel Carabera teve a temeridade de ir para a NW 2nd Street, a rua onde está plantada a casa de Lázaro González, o tio-avô de Elián, e onde foi montado o circo que acompanhou o imbróglio. Rachel empunhava um cartaz onde se lia: “Janet Reno Agiu Certo.” Foi prontamente surrada e sua vida só foi salva graças à interferência de um segurança de uma emissora de televisão. Ramón Saúl Sánchez, líder da guarda pretoriana dos exilados, ainda ostentava as ataduras que cobrem o ferimento recebido quando tentava fazer uma corrente humana durante a operação de resgate do sábado. Ele estava entre os que agrediram Rachel. Para ISTOÉ, justificou-se: “Tem gente que só matando! Ninguém tem o direito de vir aqui defender Janet Reno.”
Um dos conceitos mais sagrados da Constituição americana é o direito a opinião e sua livre expressão. Essa mesma idéia não faz nenhum sentido em Little Havana. O escritor Carl Hiaasen resumiu a questão para ISTOÉ: “Esta gente veio para o país errado. Eles precisam ir para algum lugar onde não terão de se debater tão dolorosamente com o conceito de liberdade de expressão ou o direito de discordância. Algum lugar onde as pessoas não reconheçam a carta de direitos civis mesmo que ela fosse grampeada em seus narizes.”

Sorte ou tocaia?

O fotógrafo Alan Díaz, freelance da Associated Press, alcançou a notoriedade com a foto do agente do Serviço de Imigração americano no ato de tirar Elián dos braços de Darlymple, o pescador que resgatara o garoto do Atlântico e naquele momento tentava escondê-lo na casa da família González. “Durante 158 segundos fui fotografando meio às cegas. No final, o resultado saiu melhor do que eu esperava”, conta Díaz. Mas seu furo ainda mantém uma certa aura de mistério. Afinal, as imagens são fruto da sorte ou produto de uma tocaia permitida pela família González?

Díaz disse a ISTOÉ que estava de plantão no portão do jardim dos González quando os agentes da imigração chegaram. “Pulei a cerca e corri para a porta. Entrei junto com os agentes e fui direto para o quarto principal da casa. Entrei e vi que Darlymple tentava se esconder com o menino no armário. Fiquei esperando os agentes chegarem”, disse. Mas há quem duvide desta versão, como Peter Crandon, da rede NBC de tevê: “Eles estavam afastando e batendo em todos que não estivessem vestindo a camiseta do Serviço de Imigração. Eu mesmo apanhei. Depois vi e revi o teipe da cena e não se vê o Alan entrando na casa”, diz.