Repensar a relação deixou de ser uma expressão usada apenas por casais em crise. Agora ela também se aplica ao cotidiano dos médicos para falar do que acontece na intimidade dos consultórios. A discussão da relação entre o médico e o seu paciente, uma das áreas mais sensíveis da medicina, conquista mais espaço em congressos médicos, além de ser o tema principal de um curso no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Nas noites de segunda-feira, lá se juntam cardiologistas e outros especialistas para compreender aspectos pouco discutidos no dia-a-dia. “Precisamos aliar a prática à reflexão. Temos de aprender a manter contato estreito com os pacientes e a compartilhar sua dor sem torná-la nossa”, explica a aluna Regeane Trabulsi Cronfli, médica há 23 anos, chefe do setor de Ambulatórios do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP). As aulas ministradas pela psicanalista Izabel Cristina Rios passam longe de assuntos banais, como a necessidade de tratar o paciente com simpatia ou regras para atender celular na consulta. “O médico lida com as pessoas e suas reações psíquicas ao adoecimento, que não deixam de existir porque não as abordamos. Entender o que pode estar por trás das queixas amplia o campo de visão e ajuda a dar encaminhamentos melhores”, avalia Izabel.

Vantagens – Quem passou pela experiência de um bom relacionamento com seu médico conhece as vantagens. “Ter segurança em relação a um médico dá mais tranquilidade do que qualquer remédio”, resume o pecuarista Tadeu Roberto Marinho, de Corumbá. Ele e a família se cuidam há 15 anos com o clínico geral Antônio Carlos Lopes, de São Paulo. O irmão José Antônio, por exemplo, liga de onde estiver quando sente algum mal-estar. “Ele é um
amigo que sempre atende com boa vontade. Confio tanto que peguei um avião e vim para São Paulo a seu pedido durante uma conversa por telefone. Ele desconfiou de problemas cardíacos e acertou: eu estava com a coronária entupida. Saí do consultório para colocar ponte de safena. Devo-lhe a vida”, conta José Antônio. Esse entrosamento não seria possível se anteriormente o clínico não tivesse feito uma investigação detalhada das condições de saúde e de estilo de vida desses pacientes. “Conhecendo o paciente, é possível estabelecer o diagnóstico e a gravidade do caso até pelo telefone”, afirma.
A capacidade de ouvir e resolver dúvidas de maneira didática, ao vivo, por telefone ou e-mail do ginecologista e obstetra Luiz Fernando Aguiar, de São Paulo, encantou de tal maneira Margarida Villaça de Lima, 39 anos, que ela vem a São Paulo para se consultar com ele depois de uma cirurgia de retirada do útero. Casada com um empresário, Margarida divide seu tempo entre Rondônia e Miami. “As conversas por e-mail foram fundamentais para que eu voltasse a compreender meu corpo depois da cirurgia. Nada ficou sem resposta.” Cuidadoso, Luiz Fernando telefonou para a médica que acompanha Margarida nos Estados Unidos. “Era necessário. A pior coisa é o que chamo de serviço de informações desencontradas, que deixa os pacientes irritados e cansados”, explica. O médico está entre os defensores da afetividade no exercício da profissão. “O bom relacionamento estimula a adesão ao tratamento”, diz.

Restrições – A relação entre médicos e pacientes anda agastada faz tempo. Um dos entraves mais citados pelos médicos são as restrições impostas pela medicina de grupo. A recomendação de alguns convênios é que o especialista atenda pelo menos quatro pacientes em uma hora, ou seja, 15 minutos para cada encontro. E também há o descredenciamento de médicos que não concordam com as regras do convênio, o que em parte explica a falta de fidelidade dos pacientes. Para se ter uma idéia, um estudo recente dos Laboratórios Biossintética feito com 80 pacientes com doenças crônicas revelou que 70% deles trocaram pelo menos uma vez de médico em um ano.
Desse jeito, fica mesmo difícil construir um relacionamento baseado na confiança – um dos pontos cruciais para “repensar a relação”. Mas os convênios não são os únicos responsáveis por esse estado de coisas. Há muitos problemas pendentes. Um deles é a tendência de deixar de lado a boa conversa inicial e pedir exames demais. “Cerca de 80% dos resultados dos exames são normais, o que comprova o exagero”, critica o clínico Lopes. A solicitação de tantos exames também é sintoma do receio dos médicos de serem processados pelo consumidor. “Aumenta o número de ações indenizatórias por erro médico, mas a forma correta de se proteger delas não é pedir mais exames, e sim investir na relação com o paciente”, orienta o cirurgião Paulo Roberto Corsi, professor-adjunto da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Para os pacientes do cirurgião, essa postura é facilmente percebida. “A paciência do Corsi para explicar o meu problema e a preocupação em sugerir condutas preventivas aos meus familiares eliminaram a tensão que sobrou da consulta com outro médico, que mal falou comigo”, desabafa a jornalista chilena Carolina Álvarez, 33 anos. “Ele me devolveu a paz”, afirma Carolina, que prefere não revelar seu problema de saúde.

Escolas – Uma das saídas para que outros médicos adotem posturas como a de Corsi está na formação acadêmica. “Os alunos precisam estar em contato com os pacientes já nos hospitais-escola, que todas as faculdades deveriam ter”, alerta José Luiz Gomes do Amaral, presidente da Associação Paulista de Medicina. Nas instituições mais conceituadas, os ventos da mudança são fortes. Na USP, por exemplo, há dois anos vigora um currículo com preocupações humanistas. Desde o começo do curso, o aluno estuda as reações psicológicas dos pacientes ao mesmo tempo que mantém contato com os doentes.

Outra proposta nova é a aprendizagem baseada em problemas, aplicada na Faculdade de Medicina de Marília e de Bragança Paulista, interior de São Paulo, e na escola de Londrina, no Paraná. “O aluno aprende a resolver problemas em grupo e a desenvolver uma visão mais abrangente da saúde do paciente”, avalia Ricardo Komatsu, diretor de graduação da Faculdade de Marília. Fora essas iniciativas, existe uma corrente informal, e nem por isso menos importante, a favor da mudança. Na USP, por exemplo, a professora Diana Pozzi pertence a uma comissão que providencia debates com fisiatras e outros profissionais da saúde, além de exibir filmes como Pat Adams e Sociedade dos poetas mortos seguidos de debates com alunos. O que isso acrescenta aos futuros médicos? “Os estudantes precisam entender que o conceito de saúde é mais amplo do que não estar doente. Essa é uma das idéias que podem ser captadas nesses bate-papos. Isso se alia às mudanças curriculares para prevenir a formação de um tecnocrata”, aposta Diana. Tecnocrata é aquele profissional que se preocupa meramente com o lado técnico do problema, desprezando aspectos humanos e sociais.

O que fazer pelo relacionamento
Cada um tem a sua parcela de responsabilidade para investir na relação médico-paciente
O lado do médico
O lado do paciente
Ouça o paciente com calma, interesse e com o mínimo de interrupções. Se for necessário, prolongue a consultaCrie condições para confiar no médico. Um bom começo é aceitar indicações de pessoas amigas e especialistas que você consultou e gostou
Prepare-se para não reagir de forma preconceituosa aos hábitos e opções dos doentesJogue aberto. Conte os sintomas, relate fatos e comportamentos sem constrangimento
Seja didático e use linguagem clara para responder às perguntas no consultórioListe as dúvidas antes da consulta. Se não entender as respostas, pergunte de novo até se sentir esclarecido
Não peça exames apenas para se defender de eventuais reclamações. A boa relação com o paciente é a melhor forma de prevenir queixasAvisar o médico se for pedir uma segunda opinião é um gesto de confiança