Raros são os momentos em que os fracos conseguem dobrar os mais fortes na arena política. Quando isso acontece, vira História. Quem viveu jamais esquecerá os momentos em que São Bernardo do Campo transformou-se numa trincheira lotada de operários armados de coragem até os dentes, que desafiaram a ditadura militar, ajudando a enterrá-la. Há 20 anos, a cidade símbolo do sindicalismo brasileiro entrou de uma vez por todas nos livros de História ao servir de palco para a manifestação de 1º de Maio de 1980. Realizada em meio à greve geral dos 41 dias, iniciada em 1º de abril, o protesto que reuniu cerca de 120 mil pessoas foi empurrado goela abaixo dos militares, que ameaçavam reagir à “ousadia” dos trabalhadores naqueles tempos bicudos. O “atrevimento” daqueles peões será lembrado na segunda-feira, no Estádio de Vila Euclides, que ficou famoso não por suas partidas de futebol, mas pelas assembléias de trabalhadores que tornaram a região do ABC conhecida em todo o Brasil por sua rebeldia. Lá, sem a presença das tropas de choque e dos helicópteros repletos de soldados armados de metralhadora que há duas décadas tentavam intimidar os manifestantes, artistas como Chico Buarque, Lobão e Jorge Benjor vão cantar, políticos de oposição vão discursar e antigas e atuais lideranças sindicais vão subir no palanque para comemorar as conquistas dos trabalhadores e lamentar as que ainda não foram alcançadas.

Protagonista do movimento, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio Lula da Silva, não teve o gostinho de participar do famoso 1º de maio de 1980. Isso porque ele estava trancado numa cela do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde permaneceu por 31 dias, junto com outras lideranças grevistas. “Como eu estava preso, não vivi a emoção que o pessoal que estava solto viveu”, lamentou. Lula não pôde presenciar o clima de guerra instaurado desde as primeiras horas do dia 1º, quando tropas da polícia tomaram conta da Praça da Matriz, de onde partiria uma passeata que seguiria até o estádio. Barney, um tanque da tropa de choque batizado com o nome do personagem de desenho animado da Idade da Pedra, estava ali para mostrar aos manifestantes que a força era o principal argumento da ditadura contra as suas reivindicações, como garantia de emprego e redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. “Naquela época lutamos contra a ditadura política, mas agora temos um inimigo mais invisível, a ditadura econômica. Continuamos reivindicando a redução da jornada de trabalho e a melhoria de condições de vida. A espinha dorsal deste 1º de Maio será a defesa do emprego”, constatou o atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Marinho, que, com 21 anos, engrossava as fileiras dos manifestantes há duas décadas. Desta vez, além da redução da jornada de 44 para 40 horas semanais, os trabalhadores exigem um salário mínimo de R$ 180.

Lula também foi impedido de testemunhar a missa rezada pelo então bispo do ABC, dom Cláudio Hummes, na lendária Igreja da Matriz, que abrigou muitas assembléias dos grevistas. Lula tampouco pôde participar da tensa negociação que envolveu políticos, como o então deputado estadual Eduardo Suplicy e o senador Teotônio Vilela, para convencer os policiais de que se não deixassem a multidão seguir até o estádio uma tragédia poderia marcar aquele dia. A força dos trabalhadores venceu a dos brucutus e o povo marchou para o Vila Euclides, municiado de flores e bandeirinhas do Brasil. Foi muita emoção para Teotônio Vilela: num dos bancos da Igreja que minutos antes estava lotada, ele ajoelhou-se e chorou. Isso Lula também não viu. “Foi o 1º de Maio mais importante que fizemos na nossa história. Éramos movidos por uma mistura de paixão, emoção e razão”, lembrou o ex-torneiro mecânico, que só teve a permissão de sair da cadeia para assistir ao velório de sua mãe, em 12 de maio, oito dias antes de ser solto.

Outro líder grevista preso na época era Enilson Simões, o Alemão. O então inspetor de qualidade da Volkswagen lembra que depois de liderar a greve dos 41 dias foi demitido e, com dois filhos para criar, acabou recebendo a valiosa ajuda de Chico Buarque. “Eu e outros companheiros trabalhamos numa oficina mecânica que o Chico montou, chamada Autorama. Depois, já no governo de Franco Montoro, o Fernando Henrique Cardoso, que era senador, me ofereceu um emprego no Ceasa de São Paulo”, recorda Alemão, que hoje dirige a Social Democracia Sindical e está rompido politicamente com Lula.

Cobertura – Uma das poucas lideranças que conseguiram escapar da prisão naquele 1º de Maio foi Osmar Santos de Mendonça, o Osmarzinho, um dos oradores no grande ato da Vila Euclides. Com a prisão preventiva decretada, Osmarzinho relembra o sufoco que foi conseguir chegar ao estádio: “Um grupo de deputados e jornalistas me deu cobertura para chegar na Vila Euclides”. A liberdade durou pouco. Osmarzinho acabou sendo preso dentro da Igreja Matriz, quando os trabalhadores, em assembléia, haviam decidido pôr fim à greve, em 11 de maio. Advogado trabalhista, este ex-metalúrgico está otimista com a nova geração. “Eles têm todos os elementos para serem mais vitoriosos do que nós porque vivem numa democracia.”

Hoje, de barba grisalha, Lula lamenta que a nova geração de operários não tenha um retrato claro do que foi o movimento que ele liderou. “Acho que nestes 20 anos, toda a categoria deve ter sido renovada. Naqueles tempos, eles esperavam menos de mim e do sindicato e esperavam mais deles mesmos. Hoje as pessoas já não se sentem mais na obrigação de brigar porque acham que alguém tem que brigar por elas. Mas, na verdade, as pessoas deveriam estar brigando por elas mesmas”, concluiu, com uma ponta de saudosismo. Se os operários dos tempos áureos de Lula eram, em boa parte, filhos de trabalhadores do campo que haviam decidido tentar a sorte no ABC, vindos de outros Estados ou do interior de São Paulo, hoje a “peãozada” tem uma formação intelectual e profissional muito mais aprimorada, alguns até com curso universitário. O próprio Lula lembra que as duas principais lideranças sindicais do momento – Vicentinho (presidente da CUT) e Luiz Marinho – estão cursando faculdade de Direito.

Outro veterano das grandes greves, Expedito Soares Batista, o Ditinho, acredita que os seus sucessores são mais preparados profissionalmente mas adverte que eles não podem se esquecer de que boa parte das conquistas se deve aos mais velhos. “O que eles têm hoje não são dádivas do Espírito Santo. Muitos pais de família perderam o emprego para garantir isso.” Um exemplo da nova geração de metalúrgicos, Gilberto Gomes, 21 anos, que trabalha no setor de montagem da Volkswagen, não sabe o que foram as grandes greves do ABC de 20 anos atrás. Ele nunca participou de uma greve e associou-se ao sindicato atraído pelos benefícios. Estudante de engenharia, Gilberto estuda inglês e ganha R$ 1.500: “Quero ter um cargo que me dê um padrão de vida melhor. A vida não é fácil. A gente tem que se dedicar, se esforçar e estudar para ser alguém. Eu penso mais em mim. Procuro ver primeiro a minha parte. Depois eu vejo a dos outros.”
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