Não é fácil lidar com a própria história. Principalmente quando ela tem de ser relatada para os filhos. A dificuldade transforma muitos temas em tabus. Além dos óbvios – sexo e drogas –, separação, traição, gravidez, adoção, morte trágica, suicídios, doenças graves são assuntos que não se consegue ou não se quer abordar.

Essa atitude causa um mal-estar latente que pode refletir de forma negativa no desenvolvimento das crianças. Essa é a tese de Miriam Debieux, coordenadora do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC, de São Paulo, transformada no livro Histórias que não se contam: o não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes, lançado pela Cabral Editora. “As situações mal resolvidas reaparecem com outra roupagem porque, de fato, nunca saíram da mente de seus protagonistas ou vítimas”, avisa. Ou seja, embora não se fale sobre a história proibida, ela está sempre no ar e é percebida pela mente infantil. A criança sente “uma atrapalhação” que pode se traduzir em dificuldades na escola, agressividade e condutas anti-sociais.

Miriam cita o caso de uma menina de sete anos com problemas de aprendizagem, que não sabia que era adotada. No consultório, ao ser solicitada a inventar uma história e fazer um desenho, a menina narrou a vida da mãe biológica, sem nunca ter ouvido a respeito. “A criança desenvolve um conhecimento inconsciente sobre o que os pais não falam. Ela é influenciada por essa percepção e tem uma preocupação indefinida,” explica Miriam.

As perguntas, no entanto, vêm de supetão: pai, você já fumou maconha? Ou, então: mãe, quando você transou pela primeira vez? E a resposta sai enrolada, gaguejante. Como os pais não cansam de ouvir que são modelos para os filhos, temem arranhar a imagem e perder a autoridade. É um engano. A experiência de quem optou pela verdade parece indicar que este é o caminho mais fácil. Difícil é sustentar uma mentira ou manter um segredo para sempre. Isso não significa que é preciso fazer uma reunião e transformar a sala de visitas em confessionário. É o que mostram os casos relatados abaixo.
Adoção – O caso citado por Miriam traz uma situação comum: um casal sem filhos adota um recém-nascido para tê-lo como legítimo. Terá de bolar uma história convincente para atender às curiosidades da criança. Aí começa a complicação. Um descuido e a verdade pode vir à tona. Para evitar esse risco, a assistente social Zilmar, 46 anos, e o vendedor técnico Massao Ayabe, 52, não omitiram nada a Jônata Xavier, sete anos, quando ele se incorporou à família, há um ano. A adoção não dava mesmo para esconder, mas a vida do menino tem lances dramáticos. Envolvida com drogas, a mãe verdadeira acabou morta por traficantes. Mas para os novos pais de Jônata, não importa. “Procuro estimular o amor dele pela mãe. Digo que ela morreu porque se envolveu em más companhias. Como ele é muito importante, Deus arrumou outra família”, conta Zilmar. “Ele foi bem recebido pelos irmãos e assumiu o lugar de caçula da família. Apronta todas”, conta Massao. Jônata não sentirá o chão sumir sob seus pés como acontece com muitas crianças que descobrem tardiamente ou por outras pessoas que são adotadas. A falta de jeito das pessoas em tratar o assunto tem ao fundo um erro de interpretação. “No Brasil, a adoção não é vista como a busca de uma família para o órfão. Pensa-se sempre na impotência do casal em conceber e há o medo de a criança ser discriminada”, explica a psicóloga Lidia Natália Weber, professora da Universidade Federal do Paraná.

Sexo – Para muitos conversar sobre o assunto é estimular o uso da camisinha. Mas tão importante quanto isso é comentar emoções e dificuldades. Com quatro filhas entre 16 e 23 anos e um menino de sete, a cantora Alzira Spindola, 42 anos, se orgulha de ter optado pelo papo franco. “Quando perguntaram sobre virgindade, não menti. Contei que engravidei aos 19 anos e não escondi as dificuldades de começar uma vida com um filho”, relata a cantora. Alzira procura não falar de sexo como numa aula. “Eles têm de saber o que fazer com o amor que, claro, leva ao sexo”, diz.

Albertina Takiuti, chefe do ambulatório de ginecologia do adolescente do Hospital das Clínicas de São Paulo, contabiliza um efeito desastroso da falha de comunicação nas famílias. Mães que engravidaram na adolescência em geral não conseguem evitar que o mesmo se repita com as filhas. “Apesar da experiência poucas vezes ter sido boa para elas, a maioria fantasia ou muda os fatos. Não passa para as filhas a convicção de que não era a hora apropriada para conceber.” Miriam Debieux também percebe o efeito cascata. “Como o assunto fica no ar, os filhos tendem a repetir a história dos pais. É como se a situação voltasse para ensinar a família a lidar melhor com ela”, afirma.

Homossexualismo – Sem dúvida, um assunto delicado. Quando o professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, Luiz Mott, 53 anos, assumiu sua opção sexual, estava casado e tinha duas filhas, uma com dois, outra com quatro anos. Foi dramático. “Todos achavam que era uma doença, um desequilíbrio passageiro.” Três anos depois, quis contar às filhas, mas uma psicóloga o aconselhou a esperar. Mott se arrependeu. Em 1980, fundou o Grupo Gay da Bahia, do qual é presidente, e as filhas souberam por terceiros. “Hoje elas dizem se orgulhar do pai, mas na adolescência nossa relação estremeceu”, afirma Mott. Ele defende que os homossexuais não devem se esconder e mostrar às crianças que a opção sexual não interfere no amor e cuidados para com elas.

Aids – O preconceito contra os homossexuais é tanto que não faltou quem apontasse o surgimento da Aids, na década de 70, como um castigo dos céus à pratica. E o estigma ainda é presente. Quando o pai morreu, há três anos, vítima da doença, Joaquim Salles (nome fictício), 28 anos, falou para amigos e para as crianças que a causa tinha sido a pneumonia. “Se alguém adquire Aids, logo se pensa que é gay ou drogado. Fala-se baixinho do assunto”, aponta ele. A Aids tem um fantasma por vezes mais tenebroso que a doença: o medo da exposição da intimidade. E é melhor que a pessoa que vá dar a notícia para as crianças não esteja assombrado por ele. “O adulto deve falar quando se sentir preparado a dar elementos para que a criança lide com o preconceito. Isso evita perpetuar estereótipos”, opina o psicólogo Alexandre do Valle, do Grupo pela Vida, organização não-governamental carioca que trabalha com infectados.

Drogas – Se as perguntas sobre o tema vêm espontaneamente já é meio caminhado andado, mas isso não evita que os pais engulam em seco. Todos temem o poder destrutivo das drogas. É mais aconselhável, no entanto, partilhar experiências que cultuar uma imagem falsa que pode desabar. Se usou drogas, conte. Mas não deixe de falar de suas impressões, riscos, motivações e de como a indústria da droga se sofisticou. “As encruzilhadas vividas pelos adultos são bons referenciais para as crianças”, lembra Miriam. No entanto, o tratamento escancarado do tema pode gerar reações inesperadas. Até há bem pouco tempo, a produtora Judite da Silva (nome fictício), 52 anos, fumava maconha na frente da filha, de 16. A menina, no entanto, é avessa às drogas. “Ela teme que alguém saiba que eu usei. Gela de medo que eu toque no assunto”, conta a mãe. Para Judite, o importante é a filha ser bem informada e não ter sabido de seus hábitos por terceiros. “Pior seria ficar desacreditada por ela.”
O que acontece na família de Judite é exceção à regra. Quando os pais são dependentes, não tem como o filho ser poupado do drama. Agora, se o uso é eventual, falar ou não é controverso. “Dependendo da idade, a revelação pode ser desastrosa. O filho, por falta de maturidade, pode ir de um extremo ao outro. Ou vira repressor ou subestima os riscos”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unviersidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Separação – É sempre um tema traumático para filhos e adultos. Sem contar situações em que as crianças viram instrumento de disputa e auto-afirmação entre os pais. Felizmente não foi o caso da cantora Vânia Bastos que contou com a solidariedade do ex-marido, o compositor Passoca, também na separação. Passoca, no entanto, não quis se separar de Noel, 11 anos, e Rita, 14, que foram criados por ele. “Me apaixonei pelo Eduardo (Gudin, também compositor) e fui franca. Saí de casa e voltava todos os dias para ficar com as crianças. Era dolorido ir embora”, conta ela. Mas como dizer a crianças pequenas que a mamãe deixou o papai e foi morar com outra pessoa? “Eu dizia que tinha amado muito o pai deles, depois ficamos amigos e eu me apaixonei pelo Gudin e que por isso não podia morar na mesma casa. Aos poucos, eles compreenderam”, relembra.

Traição e morte – Os psicanalistas defendem que até temas mais doloridos não devem ser evitados. Mas mortes trágicas, homicídios e suicídios traumatizam até os mais equilibrados dos adultos. Como não pensar em poupar os pequenos? “São situações que emudecem, omiti-las não apaga as emoções.”, aponta Miriam Debieux. É de conhecimento público a tragédia que se abateu sobre a família do escritor Euclides da Cunha. Anna de Assis, sua mulher, se apaixonou por Dilermando, que acabou matando o escritor e seu filho mais velho. A terapeuta Anna Sharp, neta de Anna e Dilermando, diz que a imagem que tem da avó é a de uma mulher forte que não se acomodou às convenções. Isso apesar da comoção nacional que a tragédia suscitou no começo do século. “Na aula, quando falam da morte de Euclides, eu levantava o dedo para defender o meu avô”, relata. Segundo Anna, sua avó sustentou até o fim dos dias a convicção de que tinha sido apenas verdadeira.

A dificuldade em tratar de um tema está estritamente ligado à dor que ele provoca. Em alguns casos, a ajuda profissional é imprescindível para evitar que os filhos fiquem sozinhos com suas fantasias e dúvidas. No caso da infidelidade, por exemplo, em nome de questões morais muitos adultos acabam por denegrir a imagem de quem trai, provocando nos filhos um sentimento que na verdade não lhes pertence. “Não são as crianças que são traídas, mas um dos parceiros. Na relação pais e filhos, traição é a falta de amor e de cuidados”, explica Miriam.

Produção: Márcia Marino. Assistente de produção: Rossana Scarpa. Make-Hair: Paulo Brizola/Ag. Molinos Trien. Agradecimentos: Quantas – estofados bem estofados/Hugo Bross/Ellus/Ingeklein/Lucy in the sky/Timberland/Carmin. Modelos: Márcio Chaves Marcelino (pai)/Ana Lúcia marcelino (mãe)/Luiz Fernando Marino.