mantes da arte ou não, a partir do domingo 23 vão desfrutar de um programa imperdível. Estará sediada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a Mostra do redescobrimento: Brasil + 500, que apresenta o maior inventário artístico brasileiro já realizado no País. Ao todo são 15 mil peças, entre quadros, esculturas, instalações, utilitários e antiguidades distribuídas em 13 módulos ou exposições independentes que somam uma área de 60 mil metros quadrados distribuídos pelos pavilhões Ciccilo Matarazzo (Bienal), Lucas Nogueira Garcez (Oca) e Manoel da Nóbrega. Num cálculo apressado, se o visitante gastar um minuto diante de cada obra, no total ele levará dez dias para ver toda a mostra que se estenderá até 7 de setembro, seguindo depois, em versões menores, para 12 capitais.

Fruto de três anos de reuniões, pesquisas e negociações, o gigantesco painel cronológico começa na pré-história brasileira, passa pelo barroco, pela arte acadêmica, moderna e contemporânea, sem esquecer da arte indígena, afro-brasileira e popular, e a admirável produção dos internos dos asilos psiquiátricos. A empreitada gerou emprego para mil pessoas e consumiu R$ 40 milhões, totalmente bancados pela iniciativa privada. O banqueiro Edemar Cid Ferreira, presidente da Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, responsável pela organização do evento, não teme os superlativos. “Esta mostra é um divisor de águas. A partir de agora teremos escrito a história da civilização brasileira através de sua manifestação cultural.” Para o público, quem quiser ter tudo documentado em casa terá de comprar 14 catálogos, alguns com cerca de 500 páginas. Acostumado a eventos do porte, o curador geral Nelson Aguilar, criador das linhas mestras de duas bienais, afirma que o ineditismo da Mostra do redescobrimento não é uma virtude, mas uma carência. “Deveríamos fazer uma exposição deste nível pelo menos de dois em dois anos.”

Itens raros – Mas a maioria dos 16 curadores sabe que tão cedo não será possível. O livreiro e colecionador Pedro Corrêa do Lago, curador do módulo O olhar distante – certamente o segmento mais caro da mostra, dedicado à visão que os artistas estrangeiros têm tido do País desde os tempos coloniais –, é enfático. “Muito dificilmente estas obras serão reunidas de novo.” Entre os 260 trabalhos de 41 artistas que ele selecionou figuram 30 telas do holandês Frans Post, algumas avaliadas em mais de US$ 7 milhões, com destaque para Vista de Itamaracá (1637), primeiro quadro pintado no Brasil. Pertencente ao acervo do Mauritshuis, na Holanda, a tela nunca tinha vindo ao Brasil. O mesmo acontece com o Manto tupinambá, emprestado pelo Nationalmuseet da Dinamarca. Só existem sete exemplares no mundo da deslumbrante vestimenta sagrada do século XVII, confeccionada de penas vermelhas de guará, grande atração do segmento Artes indígenas. Engrossando a lista de itens raros encontram-se a famosa Carta de Caminha – que só havia sido emprestada ao Brasil em 1954 –, e 50 valiosas peças africanas de importantes coleções européias relativas às antigas civilizações que formaram o negro brasileiro.

Muitas outras obras raras de serem vistas estão sendo exibidas em conjunto pela primeira vez. É o caso das 320 imagens de santos do módulo Arte barroca, sob a curadoria de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora titular de História da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela viajou por dez Estados brasileiros e reuniu o que define como um “mosaico do barroco no País”. Montado no subsolo e no primeiro andar da Bienal, o módulo se abre com imagens sacras portuguesas do século XVI trazidas pelos primeiros colonizadores, colocadas em meio a 80 troncos de pinho de 7,5 metros de altura. No chão, pó de piche forma pequenos lagos escuros.

Flores do Carandiru – Quem assinou a ambientação foi a diretora de teatro Bia Lessa, que imaginou um trajeto parecido a uma procissão. Primeiro o percurso revela a mão indígena num grupo de imagens das Missões jesuíticas que nunca havia saído do Rio Grande do Sul. Depois de passar em revista os santos austeros produzidos nas ordens religiosas do século XVII, o itinerário se abre para impressionantes “tapetes” feitos de flores de papel crepom roxo e amarelo.
É do meio das 200 mil flores – confeccionadas por presidiários nas oficinas de trabalho do Carandiru – que surgem as esculturas do século XVIII, grande momento da arte sacra colonial, com magníficos santos de traços regionais do barroco mineiro, baiano, pernambucano e maranhense. Myriam explica que são obras feitas nas irmandades e ordens terceiras, onde já era comum o trabalho assalariado de mulatos e negros. Entre eles o Aleijadinho, que comparece com quatro obras, com destaque para São João Nepomuceno. Na saída, uma nave com paredes de papel branco picado de 14,5 metros de altura imita o espaço de uma catedral. Bia Lessa, que na infância foi anjinho de procissão, diz que se inspirou nas festas da Semana Santa para criar o cenário. “É um imenso tapete de devoção popular.”

Além de Bia, vários artistas assinam as cenografias. A mais polêmica tem a grife do cenógrafo italiano de óperas Ezio Frigerio para o módulo O olhar distante, no qual “plantou” 25 grossas árvores azuis feitas de gesso e fibra. Paulo Pederneiras, diretor da companhia mineira de dança Grupo Corpo, ficou encarregado do visual do Pavilhão Lucas Nogueira Garcez, conhecido como Oca, antiga sede do Museu da Aeronaútica e do Folclore, cuja reforma consumiu R$ 10 milhões. No subsolo da Oca encontram-se 280 objetos do núcleo Arqueologia, alguns remontando a 15 mil anos. Segundo a curadora Maria Cristina Mineiro Scatamacchia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, os mais raros são os zoólitos, pedras em forma de animais, as muiraquitãs verdes de nefrita, as urnas funerárias marajoaras e os vasos de cariátides da cultura tapajônica, antigamente instalada na região de Santarém, na Amazônia.

Também no subsolo da Oca está exposto o crânio de Luzia, até hoje considerado o mais antigo habitante do território brasileiro. No térreo e nos dois andares restantes se instala o módulo Artes indígenas, com 800 itens de arte plumária, cerâmica, máscaras e objetos rituais. Dominada por canteiros de sementes e de penas brancas, a ambientação é um show à parte. Para criar áreas vermelha, marrom, ocre, preta, cinza e mostarda, Pederneiras usou sementes de guaraná, urucum, olho-de-boi, sucupira, andiroba, feno grego e imbiruna.
A equipe levou dois meses para conseguir as 12 toneladas de semente, que foram expurgadas e pulverizadas para evitar pragas e fungos que poderiam danificar as peças, entre elas seis raríssimas máscaras da extinta tribo dos jurupixunas, da Amazônia, recolhidas pelo naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira entre 1783 e 1792. Vindos de Coimbra e Lisboa, os sofisticados adereços de iniciação masculina ainda despertam comoção como ficou provado ao serem expostos há três anos em Manaus. O antropólogo português José António Braga Fernandes Dias, que divide a curadoria do núcleo com a antropóloga Lúcia Hussak van Velthem, ainda se impressiona com o acontecido. “Os índios que iam à exposição gritavam e faziam xixi. Os ianomamis, especialmente, ficaram muito perturbados e pediram para fazer um ritual de culto.”

Culturas diversas – A feliz decisão de mostrar as artes indígena, popular, afro-brasileira e dos loucos junto à chamada arte erudita surgiu de uma antiga idéia do crítico Mário Pedrosa (1900-1981). Ele foi um dos grandes defensores do trabalho artístico dos esquizofrênicos, belamente mostrado na sala Imagens do inconsciente na Bienal que, entre outros, apresenta o trabalho inclassificável de Arthur Bispo do Rosário.

 

 

No mesmo andar, a mostra promove no módulo Arte afro-brasileira um diálogo entre esculturas e máscaras vindas de Angola, Congo e Golfo de Benin – fontes ancestrais do negro brasileiro – e nove grandes artistas nacionais que mergulharam nessa tradição como Mestre Didi e Rubem Valentim.


Ainda há mais um segmento em homenagem ao negro, com curadoria do escultor Emanoel Araújo, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Chama-se Negro de corpo e alma. Ocupa o primeiro andar do Pavilhão Manoel da Nóbrega alinhando cerca de duas mil obras que mostram como o negro foi retratado ao longo da história brasileira. Traz desde tapeçarias, telas e objetos do cotidiano nos quais impera o estereótipo, como atesta a tela Baiana, de pintor anônimo do século XIX, até a produção recente de artistas representantes da raça. Araújo foi também responsável pela curadoria do módulo Arte popular, que reuniu 1.200 obras no subsolo e parte do primeiro andar do mesmo pavilhão. Trata-se de um exuberante universo das festas folclóricas e religiosas, que ganhou mais cor com os trabalhos de ceramistas, escultores e pintores de estilos peculiares como Nhô Caboclo, Mestre Vitalino e a Família Julião. “Busquei me afastar de conceitos como os de folclore e artesanato para ficar na questão eminentemente artística”, explica Araújo.

Novos enfoques, aliás, parecem ser a tônica da Mostra do redescobrimento. No módulo Arte do século XIX, que transformou o subsolo da Bienal numa construção neoclássica com átrio central e detalhes arquitetônicos em ruínas, 220 pinturas, gravuras e esculturas retratam como o País tentou cunhar uma imagem de nação independente através de uma pintura de gênero histórico e indianista. Esta é considerada por muitos uma arte careta e oficialesca. Mas na concepção do curador italiano Luciano Migliaccio, professor de História da Arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ela se revela muito mais rica. Basta olhar a tela Moema (1866), de Victor Meirelles. “É uma obra-chave porque mostra a tentativa de criar uma pintura de assuntos brasileiros, apesar da utilização de um gênero europeu como o idílio”, explica Migliaccio.

Orgulho – Até este momento, o visitante passeou por cenários e ambientações que ajudaram a criar uma empatia com as obras. Nos módulos Arte moderna e Arte contemporânea, contudo, depara-se com a limpidez total. Os dois segmentos são dominados apenas por painéis cinzas, concebidos pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que fazem uma síntese da melhor produção artística do País no século XX. À exceção de Alfredo Volpi, que comparece com 30 telas, a maioria está representada por poucos trabalhos, mas fundamentais. É o momento de se deter diante de telas menos conhecidas de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti ou Cândido Portinari. Responsável pela curadoria dos dois módulos, Nelson Aguilar confessa que foi embaraçoso fazer as escolhas. “Foram três anos e alguns meses de preparação, mas pudemos optar pelo melhor.” O mesmo aconteceu no módulo contemporâneo, capitaneado por Hélio Oiticica e Lygia Clark, que se fecha com os novíssimos Rivane Neuenschwander e Ernesto Neto, este assinando a obra ambiental Acontece na fricção dos corpos, feita de tule, açafrão e urucum. É o segmento mais solicitado pelos 17 museus internacionais que abrigarão parte da mostra a partir de novembro. Entre tantas baixarias vazando em esfera internacional, finalmente um motivo para os brasileiros se orgulharem do seu país.