No final da segunda-feira 17, as cúpulas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial alardeavam o sucesso obtido na reunião semestral do Comitê Financeiro e Monetário Internacional (CFMI). Cumpriu-se a agenda prevista, e todos os delegados estavam presentes ao encontro – com apenas a temporária exclusão de seis ministros, entre eles, o ministro brasileiro da Fazenda, Pedro Malan. Os membros do CFMI tiveram dificuldades em ultrapassar a barreira humana e Malan chegou ao encontro na terceira tentativa e sem seu companheiro, o presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Os manifestantes tentaram descarrilar a reunião do CFMI e conseguiram por algumas horas impedir o acesso de alguns delegados ao prédio da organização.

A batalha de Washington fora vencida pelas forças da globalização. Mas esta poderá ter sido mais uma daquelas que os cronistas esportivos costumam chamar de “vitória com sabor de derrota”. Uma vitória de Pirro, digamos. Para dar passagem aos 24 ministros do CFMI, foi necessária a mobilização de três mil policiais mais o contingente da Guarda Nacional, o Serviço Secreto e agentes do FBI. Traziam seu arsenal normal, acrescidos de mais US$ 1 milhão em equipamentos extras. Isolaram-se 90 quarteirões da cidade que é a mais bem guardada do planeta. Em três dias, foram presas cerca de 1.300 pessoas. Os cassetetes saíram gastos de tanto uso. Bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta poluíram ainda mais os ares locais. Até mesmo o chefe de Polícia, o gorducho Charles Ramsey, foi visto rolando na rua. E, como arremate final, o presidente Bill Clinton saiu da cidade.

De qualquer modo, foi notória a diferença entre os protestos violentos de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio e as badernas de agora. Há diferenças fundamentais entre o Estado de Washington e a cidade de Washington. O primeiro abrigou as hostes anárquicas numa cidade importante, mas provinciana. A segunda é a capital americana que tem tradição de hospedar manifestantes das mais diversas ideologias, sem derramamento de sangue. Tanto que já está agendada por lá a marcha chamada The Million Mutts March, ou seja: a marcha de um milhão de vira-latas, para conscientizar as pessoas de que cachorros sem pedigree também são gente, ou quase.

Sociedade alternativa – Mais uma vez, o FMI, o Banco Mundial e a globalização – a tróica mais odiada pelo que se conhece por “sociedade alternativa” – conseguiram juntar no mesmo saco gente que normalmente costuma se engalfinhar. Ecologistas cerraram fileiras com sindicalistas – tribos com posições antagônicas, quando se trata de proteção do meio ambiente. No combate à globalização, ambientalistas e operários são irmãos de armas. O resultado é uma armada brancaleônica capaz de colocar nas ruas de Washington dez mil pessoas. No sábado 15, os trabalhos deveriam começar no encontro semestral do CFMI. Mas Washington já estava inchada com a presença de sindicalistas. Num galpão abandonado, estudantes, anarquistas e ecologistas instalaram uma linha de montagem de marionetes gigantes para ancorar os militantes em locais públicos, impedindo, assim, a passagem de delegados. O galpão da contestação foi fechado sob a alegação de que o local não apresentava condições de segurança.

Despejados, os manifestantes foram às ruas. Mas o pessoal de Bretton Woods mostrou que não dorme no ponto. Literalmente. Os delegados foram acordados antes do cantar do galo e os ônibus já levavam o pessoal engravatado para o prédio do Fundo na rua 20. Os manifestantes dormiram no ponto. E também Pedro Malan e Armínio Fraga, que saíram atrasados da embaixada brasileira. Depois de duas tentativas, Fraga desistiu. Malan entrou no hotel do prédio Watergate e se reuniu com outros ministros das Finanças.

Escoltados por uma van da polícia, o ministro brasileiro e os outros cinco só foram entrar no prédio do FMI no início da tarde. Os protestos seguiram e 700 pessoas seriam presas antes que os delegados do CFMI pudessem tomar seus uísques no sossego noturno dos hotéis.

Na segunda-feira 17, a maior parte dos que haviam ido a Washington para enfrentar o dragão da globalização já tinha partido. Os sindicalistas, convenha-se, são operários e têm de bater ponto, sob o risco de perderem seus empregos para algum trabalhador mal remunerado do Terceiro Mundo. Sobrou na capital americana a linha dura do protesto. Eram eles que promoveriam as mais ferozes investidas contra a cidadela da rua 20. Ficaram, porém, sob a chuva fina e fria na rua K – exatamente o endereço tradicional das empresas lobistas. Foi quando os sprays de pimenta se misturaram ao aguaceiro que caía, deixando muita gente cega e gritando de dor. Depois de negociações extensivas, a polícia concordou em parar com o bombardeio de agentes químicos ultrapoluentes e prender os voluntários que se ofereceram para passar algumas horas no xilindró. A guerra terminou em festa na rua, com tartarugas e golfinhos ao som da world music.

Acertos finais – Mas o encontro não acabou em pizza. Reconhecendo o impacto da veemência dos protestos contra os métodos do Banco Mundial e do FMI, ficaram acertadas mudanças importantes no modus operandi das instituições de Bretton Woods. Foi alterada a fórmula como é escolhido o diretor-presidente do Fundo e acertado que o próximo diretor-gerente será apontado por uma comissão independente, depois do recente fiasco da escolha do alemão Horst Koehler, vetado pelos EUA. Os candidatos vão compor uma lista a ser examinada pela comissão, estando em julgamento suas capacidades de liderança e experiências. E os interesses dos países em desenvolvimento deverão ser levados mais a sério. Há ainda as promessas de mudanças nas fórmulas de empréstimos a nações necessitadas; de derrubada de impostos para alguns produtos que países pobres vendem aos ricos; e de ajuda monetária ilimitada para o combate à Aids. Deste modo, as reivindicações dos manifestantes por mais justiça e democratização nas decisões daqueles organismos começam a criar raízes. O que em si já é uma vitória palpável.