Yube completou 32 anos no último domingo, mas não recebeu os parabéns de nenhum parente ou amigo nem viu a festa que todo ano eles costumam preparar. Depois de 16 dias viajando de avião, barco, ônibus e até a pé, o índio kaxinawa, que saiu de sua aldeia no Acre, chegou a Porto Seguro, no litoral sul da Bahia. O presente de aniversário foi um mergulho no mar, imensidão que ele nunca tinha visto antes, no mesmo lugar onde Pedro Álvares Cabral desembarcou há 500 anos e abriu caminho para o genocídio de seus antepassados. Acostumado às águas mansas do rio Itarauacá, talvez a descoberta do mar tenha sido o único momento feliz durante sua estada de uma semana na costa do Descobrimento. “Não andei tudo isso para festejar, muito pelo contrário.” Ele e outros 2.600 índios marcharam de todos os cantos do País durante dias para chegar até a área indígena de Coroa Vermelha, a 20 quilômetros de Porto Seguro, e promover, de 18 a 22 de abril, a Conferência Indígena 2000. Reunidos para discutir o futuro do índio brasileiro, roubaram a cena das comemorações oficiais da data histórica, que eles não ousam chamar de Descobrimento, mas sim de invasão. Yube, particularmente, não tem do que reclamar – sua aldeia tem as terras demarcadas, escola e uma equipe de seis médicos. Mas acredita que a causa indígena é uma só: “Eles precisam saber que nós ainda existimos.”

“Eles” são os brancos, os não-índios invasores, que hoje formam uma nação de cidadãos tão descontentes quanto a nação indígena e fazem aos governos as mesmas reivindicações: saúde, educação, trabalho e participação política. O discurso do cacique João Tsidzapi, 39 anos, da tribo xavante do Mato Grosso, é idêntico ao de qualquer brasileiro indignado: “Os políticos passam por lá de vez em quando fazendo promessas, pedindo votos, e depois que se elegem nunca mais aparecem.” Quinhentos anos depois da chegada dos portugueses, índios, brancos e negros brasileiros falam a mesma língua e têm sonhos iguais. Não querem mais do que o necessário para a sobrevivência. Na mesma canoa, estão a ver navios.

Calça jeans e som – Nus, descalços e pintados da cabeça aos pés. A figura do índio que ficou no imaginário popular brasileiro quase já não existe. O índio do ano 2000 tem faces contraditórias: dirige automóvel, usa calça jeans e tênis e carrega um celular na cintura, mas não abandona suas tradições, a muito custo preservadas durante milênios por seus antepassados. É comum ouvir entre eles o argumento de que “é preciso tirar só o que é bom do branco”. A antropóloga Lúcia Helena Rangel, da PUC de São Paulo, não vê nada de errado nisso. “O que eles querem é o que todo mundo quer”, diz. “Além das necessidades básicas de todo indivíduo, desejam também as coisas interessantes da civilização branca, como panela de alumínio, isqueiros, óculos escuros, aparelhos de som.” Lúcia acha legítimo que os índios reivindiquem espaços para viver nas cidades. “Nós brancos queremos ver o índio pelado, de cocar. Ficamos reparando se ele está de calça jeans e não enxergamos que a cultura deles foi minada pelo nosso sistema, embora ainda resista de forma heróica. Eles são muito diferentes do que eram e a gente não entende isso.”

A religião, há muito tempo, é a mesma que a do resto do País. A imensa maioria dos 215 grupos contatados aprendeu ensinamentos católicos. Isabel do Espírito Santo, ou Inhambé Pataxó, tem 86 anos e é tão religiosa que chegou a construir uma capela em frente à casinha onde mora, em Coroa Vermelha. Padre Cícero e Nossa Senhora de Aparecida têm lugares privilegiados no altar e São Sebastião está em todas as paredes. “Rezo todos os dias. Às vezes me roubam o Santo Antônio para fazer promessa de casamento.” O sincretismo é latente. A cada duas frases que fala, dona Isabel cita Tupã, o deus dos índios. “Se Tupã quiser, nada de ruim vai acontecer a minha gente. O importante é ter um dinheirinho.” Ela vive do artesanato vendido pelos filhos e netos na aldeia de Coroa Vermelha, ponto turístico do sul da Bahia, e o dinheiro é fundamental para que não falte comida nem roupas à velha pataxó. Vaidosa, faz questão de combinar os vestidos com os sapatos, coisa que seus ancestrais nem sequer sabiam que existia.

Universidade – Os tempos mudaram. Hoje, a tentativa de integração e formação de índios cidadãos começa pelo anseio de estudar que a imensa maioria alimenta. E estudar, para eles, tem exatamente o mesmo significado que para os brancos: primeiro e segundo graus e, se Tupã ajudar e o governo fizer a sua parte, cursar uma faculdade. “A gente precisa aprender o que eles sabem para poder entender o que eles dizem”, resume Maura Rosa Ttitiã, pataxó hã-hã-hãe de 50 anos que, na adolescência, chegou a trabalhar em regime de semi-escravidão. “Uma funcionária da Funai me convenceu que eu ia perder minhas terras e deveria ir morar com ela. Trabalhava como doméstica em troca de comida e uns trapos de roupas”, conta. “Se eu soubesse o que se passava a minha volta, teria como me defender.”

Há quem diga que os índios ainda hoje preservam certa ingenuidade, assim como os tupiniquins, que ocupavam a costa quando as naus e caravelas portuguesas chegaram e foram “aliciados” com bugigangas trazidas de além-mar. Hoje, as bugigangas são mais sofisticadas do que os espelhos daquele tempo – jatinhos, barcos, celulares – e os aliciadores são outros. Não raro índios negociam com madeireiras, mineradoras e até mesmo com o próprio governo. “Até a Funai tenta cooptar lideranças indígenas. E consegue, porque é um povo pobre”, diz dom Tomás Balduíno, da Pastoral da Terra e um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à CNBB. “Mas isso tudo é resultado da força política que eles estão criando. Se não fosse assim, não haveria por que cooptar”, analisa. Além da força política, cresce também a representatividade.

Se antes da chegada de Cabral por aqui eles eram tão numerosos quanto hostis uns aos outros, 500 anos depois eles são poucos, porém unidos. O movimento indígena brasileiro, que surgiu nos anos 60 e tomou força na década de 70, é formado por cerca de 500 organizações em todas as regiões do País e sonha fundar um partido. Embora possa parecer visionária, a idéia não é utópica: o Brasil tem dois prefeitos, três vice-prefeitos e 29 vereadores índios. As reuniões não deixam nada a desejar às de um partido de fato ou, melhor ainda, uma legenda de oposição. Longas discussões, apartes, questões de ordem e consultas à base – os índios que vivem nas aldeias – fazem parte das assembléias. No Acre, lideranças femininas fundaram uma organização, mantida por uma ONG alemã, que cuida exclusivamente dos direitos das índias mulheres. Assim como entre negros e brancos, os índios também podem ser machistas. “Sempre estivemos ao lado dos homens na hora da luta, mas nosso esforço não era reconhecido”, diz Letícia Yawanawa, 31 anos. “A mulher também tem que acompanhar e indicar as lideranças.” Segundo ela, a mentalidade dos índios em relação à participação feminina está mudando, prova de que a cultura desses povos não parou no tempo.

Canteiro de obras – Às lideranças indígenas sobra disposição, e não há como negar que eles tiraram o fôlego das dispendiosas comemorações oficiais dos 500 anos. A polícia militar baiana subestimou o poder de mobilização dos índios e, no dia 5 de abril, destruiu um monumento-símbolo da resistência indígena que os pataxós ainda construíam em Coroa Vermelha. O episódio repercutiu e causou constrangimento ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Frederico Marés. “Nem se o presidente da República pedisse desculpas públicas aos pataxós iria conseguir se redimir”, disse ele. O ministro dos Esportes e Turismo, Rafael Greca, que fez da região de Coroa um verdadeiro canteiro de obras para transformar o local a tempo de comemorar os 500 anos, agora é acusado de ser o mandante da destruição. Marés chegou a sugerir que Greca deixasse o governo (leia entrevista à pág. 54). Fernando Henrique até há pouco tempo cogitava a hipótese de transferir a sede do governo para a região durante a semana do Descobrimento, mas nunca mais tocou no assunto.

Entre as trapalhadas cometidas pelo governo em tempos de “comemorações brancas”, maneira como índios e negros se referem ao episódio da chegada dos portugueses, está a retirada da cruz de madeira que há 30 anos marcava o local onde foi realizada a primeira missa em solo tupiniquim, nas terras que hoje pertencem aos pataxós. No lugar, está fincada uma cruz de aço inox, idealizada pelo artista plástico baiano Mário Cravo por encomenda de Greca. Para os índios, a retirada serviu para reafirmar a dominação do homem branco sobre os povos indígenas. “Assim como o Sol e a Lua continuam no mesmo lugar, para nós nada mudou depois que eles vieram. Depois de tudo o que passamos, conquistamos direitos e as autoridades não podem invadir nossas terras e fazer o que querem”, queixa-se Davi Yanomâmi, um dos líderes mais importantes do País, ganhador do prêmio da ONU Global 500. “Nosso futuro depende da nossa luta. Se a gente não fizer, ninguém fará por nós.” Na Amazônia, Américo Cruz Arena, um índio globalizado que perambula comercializando peixes entre Brasil e Peru e fala um portunhol misturado com seu dialeto indígena, luta sozinho pela demarcação das terras de seu povo Kurubu. Escreve cartas para ONGs internacionais e quase sempre recebe resposta. Na última semana, Américo enxergou uma luz no fim do túnel: “Fomos recebidos pelo presidente e isso é muito bom. Temos que aproveitar isso.”
Encarada pelo senso comum como uma minoria étnica em extinção, ao contrário do que se previa, a população indígena brasileira está crescendo, em números e em grau de participação política. Nos 500 anos do Brasil, os índios mostraram que querem ser cidadãos como os brancos, negros ou qualquer outra raça. A aldeia agora é global. Eles não querem desaparecer nem virar peça de museu.