O coronel reformado Wilson Machado viveu os últimos 33 anos como um típico carioca na Barra da Tijuca, onde mora, e na Praia Vermelha, seu local de trabalho até 2012. As cicatrizes de seu abdome – marca que carrega pela participação no atentado do Riocentro – o impedem de circular sem camisa no calor do Rio de Janeiro, mas nunca limitou seus compromissos sociais na cidade. O silêncio do militar lhe garantiu uma vida tranquila e, graças à proteção de seus pares, o passado não o incomodava. Nos últimos dois meses, porém, Machado alterou sua rotina pacata e desapareceu. Ele tomou essa iniciativa depois de saber que agentes da Polícia Federal o procuram para que ele preste depoimento à Comissão da Verdade em Brasília. A Comissão quer saber dele detalhes sobre o transporte clandestino de bombas em seu carro, no dia 30 de abril de 1981, para promover o atentado em evento organizado pelo Partido Comunista Brasileiro nos pavilhões do Riocentro. Quando Machado for encontrado, ele terá de comparecer à audiência. Isso porque a comissão tem amparo legal para solicitar à PF a condução coercitiva do coronel reformado, que passou a vida se esquivando de dizer a verdade sobre o crime que colocou a vida de 20 mil pessoas em risco.

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A ideia da Comissão da Verdade é confrontar o ex-capitão com o homem que o socorreu logo após a explosão e testemunhou a ação criminosa: o corretor de imóveis Mauro César Pimentel. Ouvido na semana passada, Pimentel revelou detalhes que derrubam os argumentos apresentados nos inquéritos militares até então: os de que Machado estava no local “em missão de fiscalização, como um agente à paisana”. Pimentel rebateu essa versão. Ele disse que viu o sargento Guilherme Pereira Rosário e o capitão Wilson Machado armando a bomba que minutos depois explodiu com eles dentro do carro. Ele afirma que tentou socorrer o capitão, que ficou gravemente ferido. O sargento, que estava com o explosivo no colo, morreu na hora. “Se ele quiser negar isso o resto da vida, que negue. As provas mostram que as mentiras deles vêm à tona. O carro não estava em movimento, estava parado. E não teve granada. Eu o socorri, e o tirei de dentro do carro, com os olhos esbugalhados, o braço chamuscado e o abdome sangrando muito”, afirmou Pimentel. Outra testemunha ouvida pela Comissão da Verdade, na última semana, o almirante Júlio de Sá Bierrenbach disse que os militares tinham bombas no carro para um atentado com muito mais vítimas e que o primeiro inquérito foi manipulado desde o início para colocar os dois autores como vítimas.

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O fracassado atentado do Riocentro sempre foi motivo de constrangimento entre os militares. O plano de explodir bombas na festa do 1º de maio e colocar a culpa nos militantes de esquerda foi arquitetado durante um ano, mas na desastrosa execução o sargento Guilherme do Rosário foi a única vítima. Wilson Machado estava do lado. Usou um Puma, seu carro particular, no crime. Ele era o líder da “equipe 1” dos quatro grupos que planejaram o atentado. As bombas que transportava no carro seriam usadas para explodir o palco de shows, o que fatalmente mataria artistas e parte do público. Os militares do chamado “Grupo Secreto” acreditavam que uma série de atentados falsamente atribuídos à esquerda poderia frear o processo de redemocratização que se iniciava. Como se sabe, a armação deu errado.
Embora tenha sido denunciado pelo Ministério Público Federal, uma vez que o crime de 1981 não está coberto pela Lei da Anistia, de 1979, o ex-capitão só havia se pronunciado em investigações comandadas pelos próprios colegas, mas ele nunca foi confrontado ao repetir que estava em “missão de fiscalização”. Ao MP, Machado insistiu na versão de que, no dia do atentado, era um agente “disfarçado de civil”, apesar de as investigações terem identificado que seu colega usava coturnos quando morreu. “A versão apresentada não é crível, não sustenta padrões mínimos de plausibilidade, além de ser dissonante de toda prova produzida nos autos”, traz relatório produzido pelo Ministério Público. Se a PF conseguir encontrá-lo e o depoimento for confirmado, será a chance histórica de elucidar o caso, três décadas depois.

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O atentado do Riocentro foi o maior da série de outras 46 explosões que ocorreram no País de 1980 a 1981. Os delitos cometidos com a anuência do Estado brasileiro, após a promulgação da Anistia, permaneceram sem nenhum tipo de condenação. Os militares envolvidos na série de atentados ocorridos durante o governo de João Figueiredo nunca foram identificados. O avanço nas investigações do atentado do Riocentro tem o efeito de desencadear apurações regionais sobre outros crimes. Apesar de os delitos terem ocorrido há mais de 30 anos, eles são considerados imprescritíveis, pois não são enquadrados como tentativa de homicídio, mas atentado do Estado contra cidadãos.

Foto: J V TRINDADE/CPDOC JB


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