Nessa sexta-feira, 18 de abril, completam-se 83 anos que uma mulher e um jovem psiquiatra sentaram-se frente a frente numa sala do Hospital Saint-Anne, em Paris – dava-se ali o início de uma revolução na psiquiatria, na psicanálise e nas demais áreas do conhecimento que se propõem a estudar o comportamento humano. A paciente se chamava Marguerite-Jeanne Pantaine Anzieu, tinha 39 anos e, naquela noite, num dos corredores do teatro Saint-Georges, no qual se exibia a comédia de Henri Jeanson “Tout Va Bien”, tentara assassinar a atriz Huguette Ex-Duflos (era assim que a estrela francesa assinava após ter se divorciado). O médico que entrevistava Marguerite na clínica, dez anos mais moço e em nada disfarçando o seu encantamento em acompanhá-la psiquiatricamente, era o desconhecido Jacques-Marie Émile Lacan, que, décadas depois, se tornaria um dos maiores pensadores que já pisaram no planeta.

Jacques Lacan passou a fazer o que ninguém fazia à época com criminosos, e atualmente ainda pouco se faz: vasculhou cada escaninho da trajetória de vida de Marguerite, remontou a sua história familiar e conseguiu estabilizar-lhe a “psicose paranoica de autopunição” – categoria por ele cristalizada na medicina (“Da Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade”, tese de doutorado, 1932). Descobriu que o mecanismo pelo qual se dá a recuperação psíquica de um indivíduo aponta a natureza e a causa de sua psicopatologia e de eventual conduta violenta. Ao jogar com a interação de fatores ambientais e biológicos, Lacan incluiu definitivamente na psiquiatria o conceito de personalidade, ainda semeado e colhido no campo da psicanálise. Pode-se dizer que para ele era imprescindível inteirar-se da história de quem pratica atos antissociais se há o projeto de fazê-lo mudar de conduta.

Há um excelente estudo que acaba de ser divulgado pela Fundação Getulio Vargas (coordenado por José de Jesus Filho, integra a pesquisa “Poblaciones Carcerárias em Latinoamerica” feita no Brasil, Argentina, México, Peru, El Salvador e Chile). Seu pioneirismo fica por conta do minucioso levantamento do histórico de vida da população carcerária, feminina e masculina, do Estado de São Paulo (como o Estado reúne quase 50% dos 550 mil presidiários do País, a pesquisa tem confiável amostragem e peso nacional). No relatório se constata que um em cada dois presos já teve algum familiar encarcerado, é reincidente na transgressão e conviveu na infância com pais alcoolistas. Assim como Jacques Lacan investigou o universo de sua “Aimée” Marguerite, um dos méritos da pesquisa é o de montar o retrato do sistema prisional por meio da trajetória de vida individualizada de sua população para desembarcar na explicação, também individualizada, do comportamento transgressor. Outro ponto positivo: apesar de priorizar o histórico familiar do preso, a exemplo de Lacan o relatório não responsabiliza somente o ambiente pela formação do delinquente, o que significaria retroceder aos anos da contracultura nos quais o conceito ideologizado de sociopatia (a psicopatia seria da sociedade) fazia do criminoso apenas um coitado e da sociedade, a única algoz. O ambiente tem função, mas muito mais como modulador do que como causador de uma eventual temperamentopatia. Há estudos a indicarem que cerca de 70% da população institucionalizada apresenta transtorno de personalidade, entendida ela não mais apenas no recorte psicanalítico lacaniano, mas também no campo biológico da neurociência. Colocando-se Lacan no relatório da FGV chega-se inevitavelmente ao porto mais seguro na questão da criminalidade: a motivação para o ato antissocial embute psicopatologias que o Estado tem o dever ético e legal de tratar – isso se quisermos, e queremos, diminuir a reincidência delituosa no País.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ