Com uma população de 1,3 bilhão de pessoas, a China se posiciona hoje como o segundo maior mercado de cinema do mundo. Emperrado durante décadas, o setor teve uma reviravolta com o boom econômico e deve, inclusive, superar os EUA nos próximos cinco anos. Nessa corrida, o gigante asiático comprou e fez se alastrar em suas megacidades a maior rede multiplex do planeta, a AMC. Protecionista ao extremo, o governo chinês só permite que 34 filmes estrangeiros sejam exibidos por ano nos cinemas locais. Sorte, então, para os títulos liberados. “Homem de Ferro 3”, por exemplo, faturou US$ 124 milhões no país e teve mais da metade de seu orçamento de US$ 200 milhões pago numa tacada. Em contrapartida, a própria produção nacional, que abocanha o grosso da bilheteria, se desenvolveu com o ligeiro afrouxamento da censura. Natural, então, que queira ganhar o mundo e é nesse novo cenário que surge o filme “O Grande Mestre”, superprodução do diretor Wong Kar Wai feita em parceria com Hong Kong, previsto para estrear no Brasil na quinta-feira 17. Tido até então como um cineasta cult, muito elogiado, mas de público restrito, ele registrou a sua maior bilheteria em 15 anos de carreira, faturando US$ 64 milhões, o equivalente à soma dos lucros de todos os seus longas juntos. Foi também lembrado pelo Oscar, quando concorreu nas categorias de fotografia e figurino, o que mostra como Hollywood anda bajulando a produção da maior potência do Oriente.

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CLUBE DA LUTA
Tony Leung (ao centro), no papel do professor de
Bruce Lee: braço quebrado duas vezes

Nascido em Xangai, mas radicado em Hong Kong, onde pôde desenvolver uma carreira mais arejada e longe das tradicionais e pesadas produções de época, Kar Wai já havia feito coproduções com a China. “O Grande Mestre” é, no entanto, a primeira totalmente falada em mandarim e com um pano de fundo tipicamente “continental”: trata da vida de Ip Man (Tony Leung), o treinador do campeão de lutas marciais Bruce Lee. Não espere, contudo, uma sucessão de disputas coreografadas, feitas com o auxílio de cabos de aço, como é habitual nos filmes do gênero. A sequência de golpes, mais parecida com duetos de balé moderno, está lá, claro. Mas Kar Wai vale-se da figura desse mestre de uma das muitas modalidades de kung fu (wing chu) para falar de uma tradição milenar que ele teme estar desaparecendo – e com isso fazer um comentário sobre as rápidas transformações pelas quais passa a China atualmente. Dessa forma, fez questão de se manter atento aos detalhes históricos do enredo, que se inicia às vésperas da segunda guerra sino-japonesa (1937 – 1945). É nesse período que lutadores do norte do país se unem aos sempre rivais do sul, onde desponta Ip Man.

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BELEZA FATAL
Zhang Ziyi como a lutadora que abre mão do amor: treinamento de três anos

Segundo o costume dessas sociedades monásticas, Man confronta o mestre do norte num duelo de astúcia. Vence, mas, em nome do clã, é desafiado pela filha do patriarca, Gong Er (Zhang Ziyi). Em surdina, nasce nessa disputa uma história de amor proibido, refém do estrito código de honra que rege essas seitas. Kar Wai leu tudo o que pôde sobre a época enfocada, viajou o país por três anos entrevistando mestres ainda vivos e seus descendentes e discípulos. Exigiu que seu figurinista pesquisasse tecidos e padronagens e treinou os protagonistas por mais três anos para que eles aprendessem a fundo todos os lances das lutas – Leung atrasou as filmagens devido a duas fraturas sofridas nessa fase. As gravações também não ajudaram: o diretor encenou muitas lutas sob constante chuva cenográfica, o que aumentava a exigência sobre o elenco – uma delas, gravada à noite, consumiu 30 dias. Não satisfeito, nunca dava por terminada a história – fez, então, três versões do filme, após dois anos de montagem: uma para a China, uma para a abertura do Festival de Berlim, no ano passado, e outra para o mercado americano, que vem com o selo de luxo “Martin Scorsese Presents”.

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O resultado visual é de encher os olhos. No funeral do mestre Gong Yutian (Wang Qingxiang), pai de Gong Er, um cortejo branco desfila sobre uma paisagem nevada, lembrando a grandiosidade de um Sergei Eisenstein ou Akira Kurosawa. A luta entre Gong Er e Ma San (Zhang Jin), assassino de seu pai, passa-se numa estação com trens em movimento, numa sequência que bem poderia estar em um filme de “Homem Aranha” ou “X-Men”. A lembrança dos super-herois não se dá por acaso. Na falta dos personagens sobre-humanos dos quadrinhos, a China tem os seus mestres do tatame, parece dizer Kar-Wai. Apenas citado ao final, um filme focado em Bruce Lee pode ser o novo desafio do diretor. Mas, após os dez anos gastos para realizar “O Grande Mestre”, ele diz que primeiro tem direito ao seu descanso de guerreiro.