A avalanche de críticas após a divulgação do erro na apresentação do resultado da pesquisa sobre a percepção dos brasileiros em relação à violência contra as mulheres, publicada há três semanas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fez o presidente do instituto, o economista Marcelo Neri, anunciar na semana passada novos procedimentos para a revisão dos estudos publicados pelo órgão. Ele também rebate os ataques de especialistas que apontam um possível aparelhamento político da instituição. “Criamos uma nova ferramenta que permitirá às pesquisas receber dois pareceres técnicos antes de sua publicação”, disse Neri à ISTOÉ. “Isso fará com que todos os técnicos da casa se debrucem sobre as nossas produções.” O programa, que ainda está em fase de testes, tem como objetivo aumentar o rigor na etapa da revisão e evitar que informações incorretas – como a troca de 26% por 65% no percentual de brasileiros que concordavam com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” – sejam publicadas. 

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FALHAS
Especialistas apontam que o estudo polêmico não contou com
o mesmo rigor metodológico que o IPEA costuma adotar

Com uma repercussão sem precedentes, o resultado do estudo ofuscou, à primeira vista, aspectos metodológicos que, depois, começaram a ser questionados. “É nítido que houve falhas durante a elaboração da pesquisa”, afirma Ana Maria Nogales, professora de estatística da Universidade de Brasília (UnB). “O estudo não tem um objetivo claro e as perguntas foram formuladas de maneira enviesada”, diz. “Além disso, não contou com o mesmo rigor metodológico que o Ipea costuma adotar.” Segundo Neri, a equipe dirigida por Rafael Guerreiro Osório, ex-diretor do Departamento de Estudos e Políticas Sociais, usou como modelo um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) realizado na Colômbia. “A nossa pesquisa pode ser melhorada, mas não podemos dizer que tem uma qualidade inferior”, afirma. “Estamos em uma curva de aprendizado.” Por trás do erro que abalou a imagem da instituição, um debate mais profundo vem à tona: qual é a função atual do instituto, que nasceu com o objetivo de avaliar políticas econômicas adotadas pelo governo?

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O que está em jogo é saber se o Ipea perdeu a função que lhe foi atribuída há 50 anos de órgão de planejamento econômico e, ao enveredar para o campo das políticas públicas, tornou-se um órgão “aparelhado pelo governo”. “Em 1964, o Ipea era um refúgio para quem tinha opiniões contrárias ao regime e o governo não costumava interferir”, afirma Raul Velloso, consultor econômico e ex-secretário de Assuntos Econômicos do governo José Sarney (1985-1990). “Com o passar do tempo, foi perdendo esse caráter e hoje tornou-se um grande cabide de empregos para funcionários públicos”, critica. O Ipea surgiu como uma espécie de consciência crítica para apontar erros e riscos do projeto econômico que os militares implantavam. Em 1974, por exemplo, o economista Pedro Malan alertou que o governo do general Ernesto Geisel subestimara os efeitos da crise do petróleo de 1973 em seu 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (leia quadro).

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A mudança de instituto econômico para órgão social ocorreu, de fato, segundo Raul Velloso, com a chegada do governo Lula e do economista Márcio Pochmann à presidência da instituição. “O peso dos gastos do governo com a área social aumentou e eles transformaram o instituto em um órgão de Estado.” Já o atual presidente, Marcelo Neri, acredita que, a exemplo de instituições como o Banco Mundial e a ONU, o Ipea deve aliar atuação econômica à perspectiva social. “O instituto reflete um Brasil que tem uma agenda mais diversificada do que o combate à inflação”, afirma. Para o professor de história do Instituto Federal de Goiás Walmir Barbosa, as políticas públicas tornaram-se o centro dos estudos da instituição há mais tempo, desde o final da década de 1980. “O órgão se transformou num instrumento de avaliação de políticas sociais porque o Estado também perdeu seu papel central na economia na época das privatizações”, diz. “Hoje, o Ipea atua como um leitor crítico do governo com vistas a um desenvolvimento regional”, diz. Segundo ele, não houve uma ruptura na trajetória do instituto. “As políticas sociais eram trabalhadas desde a época do ex-presidente Itamar Franco, com estudos sobre negros e fome, mas foi durante o governo Lula que os temas sociais se tornaram mais relevantes.” Agora, depois deste duro golpe, resta saber para qual lado o Ipea caminhará.

Foto: Martin Poole


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