Hilda Hilst era uma mulher brava. Quando criança, uma das primeiras alunas do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, desistiu do projeto de ser santa – uma das primeiras “profissões” que lhe ocorreu abraçar – quando uma das freiras mandou que ela baixasse a cabeça para ouvir o sermão.

“Só baixo os olhos diante de Deus”, respondeu. Em represália, perdeu para sempre o papel de Chapeuzinho Vermelho, e passou, a partir dali, a interpretar o papel do vilão da história nos espetáculos de fim de ano da escola religiosa. Hilda passou a viver o Lobo Mau.

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Faz dez anos que a autora de “Rútilo Nada”, prêmio Jabuti de 1994, morreu. Centenas de páginas de diários, fitas gravadas, rolos de filme Super-8, cartas e histórias como esta, contadas durante esfumaçadas noites em torno de sua mesa, permaneceram sob os cuidados de seu melhor amigo, o escritor José Luiz Mora Fuentes. Um ano antes de morrer, em 2009, Mora Fuentes convidou a cineasta Gabriela Greeb para realizar um documentário sobre a Casa do Sol, morada da escritora em Campinas, interior paulista, desde 1966, e hoje instituto cultural com seu nome. “Contato, Hilda Hilst Pede Contato” deve sair este ano do forno.

O título do filme é uma referência às tentativas de comunicação da escritora com amigos, parentes e ídolos mortos. A cineasta chegou a viver na casa de alguns deles durante a fase de pesquisa, levantando mais de 100 horas inéditas de gravações.
Gabriela mostrou o material para ISTOÉ.

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COMUNIDADE
Abaixo, Hilda Hilst (a terceira da dir. para a esq., de pé) com os amigos
Caio Fernando Abreu (o segundo da esq. para a dir.) e Lygia Fagundes
Telles (a segunda da esq. para a dir., sentada) na Casa do Sol (acima)

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As experiências registram tentativas de contato da escritora com gente como o escritor Caio Fernando Abreu, que viveu na Casa do Sol em 1968, após ser detido e depois liberado pelo Dops. Foi lá, aliás, que o autor e jornalista gaúcho, morto em 1996, escreveu “Inventário do Irremediável”, importante conjunto de textos de resistência cultural do período mais grave da censura no País. Em outras falas, ouve-se uma Hilda preocupada com as injustiças do Brasil, como quando pede contato com Vladimir Herzog, para descobrir seu assassino e provar que sua morte não tinha sido suicídio. Em outros momentos, a voz é de uma mulher saudosa dos pais. Há também reflexões sobre suas influências literárias: “Kafka, você está me ouvindo? Não deve ser fácil aí do outro lado.”

É que, além de brava, Hilda era uma mulher amorosa. Apaixonou-se pela humanidade da literatura, que a fez deixar uma vida social invejável para viver no silêncio de um sítio onde podia ter todos os seus livros e se dedicar ao ofício do qual nunca conseguiu se manter inteiramente. Sempre orbitada por pessoas interessadas em seu trabalho, recebia com braços abertos e um bom vinho do Porto, recomendação médica, dizia – uma garrafa no almoço, era a medida para uma entrevista.

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A Casa do Sol estava sempre cheia. Muitos escritores e artistas passavam meses ou às vezes anos dividindo o teto e os cuidados da proprietária com os quase 150 cachorros que vivem lá até hoje. “E muitos deixaram documentações da rotina, como o artista plástico Jurandy Valença, outro dos grandes amigos da escritora”, conta Gabriela, que só conseguiu chegar até a fase de produção graças a um prêmio de R$ 600 mil da Petrobras e R$ 100 mil do próprio bolso – o orçamento original era de R$ 1,6 milhão.

Amigos, cachorros e também os homens povoam a história da escritora, que falava palavrão e publicava textos obscenos belíssimos e de uma ironia cortante. Hilda teve muitos.

Os únicos que quis e não teve foram Júlio de Mesquita Neto, antigo dono do jornal “O Estado de São Paulo” – com quem se correspondeu, conviveu e para quem dedicou, em segredo, o livro “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão” – e Marlon Brando. Em “Fico Besta Quando me Entendem”, compilação de entrevistas organizadas pelo jornalista Cristiano Diniz, ela conta que namorou Dean Martin só para conhecer Brando. E como o namorado demorava a apresentá-los, bebeu bastante, subornou o porteiro do hotel e bateu na porta do quarto onde o ator estava hospedado. Ele recebeu a escritora num “belo robe de seda” e, com muita educação, perguntou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Sem baixar os olhos, Hilda deu meia-volta e foi embora.


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