O nervosismo era grande no Palácio do Planalto. O presidente Lula estava agitado. “Excitadíssimo”, relata uma testemunha. Convocava um ministro, cobrava explicações, depois outro, e mais outro. O presidente, agora reeleito, acabara de retornar do descanso numa praia do sul da Bahia. Era segunda-feira 6, o primeiro dia do resto de seu governo, e ele queria recomeçar o mandato com obras, muitas obras, em especial estradas, ferrovias, portos e hidrelétricas, obras de infra-estrutura que ajude a acelerar o crescimento daqui para a frente até o patamar de 5% ao ano. Na verdade, Lula quer uma superinfra-estrutura. Sonha fazer a transposição das águas do rio São Francisco, projeto de dois séculos, orçado em R$ 5 bilhões na fase inicial. Quer construir duas super-hidrelétricas de uma só vez, Belo Monte, no rio Xingu, orçada em R$ 7,5 bilhões, e um complexo no rio Madeira, de R$ 20 bilhões. Planeja tocar também duas ferrovias, a Norte-Sul (R$ 2,6 bilhões) e a Transnordestina (R$ 4,5 bilhões), melhorar os portos de Santos e Itaqui, duplicar uma série de corredores de exportação, como a BR-101 nos trechos sul e nordeste. “Preciso desobstruir a área de infra-estrutura”, disse Lula aos ministros. “Quero começar o ano dando um salto de qualidade.” Em outro momento, explicitou: “Meu problema agora é tentar destravar todas as coisas que podem dificultar os investimentos, todas as coisas! E eu quero ver se anuncio as medidas antes de tomar posse.”

Em seu primeiro mandato, Lula não tocou obras significativas. Nenhuma. Inaugurou novas turbinas da hidrelétrica de Tucuruí, um projeto dos antecessores. De novo, somente cisternas, dentro dos programas de distribuição de renda. A obra de maior relevância foi a Operação Tapa-Buracos iniciada em janeiro. Agora Lula quer deixar sua marca, legando ao País uma superinfra-estrutura. Merece aplausos. Os ministros, muitos deles lutando para garantir vaga no time do segundo mandato, atravessaram a semana num vai-e-vem entre suas pastas e o palácio, estudando a viabilidade dos projetos. A Esplanada viveu dias de absoluta tensão. Na quinta-feira 9, todos os ministérios trabalharam até as 22 horas. Em três deles, Transportes, Energia e Integração Nacional, a maioria das janelas estava iluminada até meia-noite. O que dá para tocar? Por que não se tocou ainda? O que está pegando? O problema de Lula é: querer não é poder.

O maior entrave é o círculo vicioso de uma equação macroeconômica que não fecha. Lula torrou tudo o que dispunha para garantir a reeleição. Deu aumento para funcionários públicos e jogou pesado em projetos sociais. Agora os números não batem. O orçamento de investimentos da União para 2007 é de R$ 17,6 bilhões. Mas será preciso cortar R$ 20 bilhões para manter as contas dentro da Lei da Responsabilidade Fiscal. De onde? Das obras ou do Bolsa Família? Ainda não se decidiu onde cortar. Nem como conseguir mais dinheiro. Neste momento, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, prepara um pacote fiscal – mas apenas para garantir a manutenção da arrecadação.

Construir a superinfra-estrutura de Lula é mais complexo do que se imagina. O BNDES avalia que, para garantir o crescimento sustentável (crescer sem inflação), são necessárias 100 grandes obras, que custam R$ 400 bilhões. Já a Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib) calcula que o País precisa de R$ 87,7 bilhões por ano de investimentos em infra-estrutura para garantir o crescimento sustentável. Obras públicas e privadas. Se o governo e as estatais, somados, conseguirem investir tudo o que está previsto para 2007, chega-se a R$ 66,9 bilhões. Ou seja, ainda vão faltar quase R$ 18 bilhões. Essa matemática sombria não inclui os cortes que vêm por aí. Além disso, o investimento está muito concentrado no setor de petróleo, na Petrobras. O setor de saneamento, por exemplo, precisava de R$ 10 bilhões em investimentos este ano. Teve R$ 3,6 bilhões. O setor de transportes investiu um terço do necessário. “Isso é muito grave”, diz Ralph Lima Terra, vice-presidente da Abdib. “Ou o País faz um programa maciço em infra-estrutura ou perde a capacidade de competição.”

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Há um outro entrave segurando as obras – tão grave quanto a falta de dinheiro. São as licenças ambientais. Dez em cada dez empresários reclamam da combinação de radicalismo dos ambientalistas com a inoperância da burocracia do Ibama. Os ministros também. É licença de instalação, licença de operação, licença de funcionamento – e nada sai. “Esse processo tem sido difícil e imprevisível”, protesta Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, que reúne as empresas de energia. Em outros países tem isso? Tem. “Mas aqui é mais complicado”, faz coro Ralph Terra, da Abdib. Tempos atrás, Lula tentou convencer a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, a ser mais flexível.

Chegou a exagerar nas metáforas. “Marina, essa coisa de meio ambiente é igual a exame de próstata: não dá para ficar virgem a vida toda”, argumentou Lula, conforme relata o livro Viagens com o presidente. “Uma hora eles vão ter que enfiar o dedo; se é para enfiar, é melhor que enfiem logo.” Marina não gostou. E não liberou nada até agora. A transposição do São Francisco, rainha das prioridades de Lula, não saiu do papel. Na semana passada, o governo anunciou que vai lançar novo edital do projeto para ver se agora vai! O complexo hidrelétrico do rio Madeira (custa R$ 20 bilhões e a estatal Furnas já tem dinheiro para começar) também esbarra nos interesses das ONGs ambientais. Agora é Lula quem quer radicalizar. Planeja remover Marina do Ministério. A idéia é instalar no lugar o governador do Acre, Jorge Viana, mais ágil e flexível. Outro plano é instalar nos Transportes um ministro forte e de sua confiança. Está pensando em deslocar para lá Luiz Fernando Furlan, hoje no Desenvolvimento.

Nos últimos quatro anos, os sonhos presidenciais encolheram muito. Só de estradas, ele planejava duplicar 4,4 mil quilômetros. Para o segundo mandato, conforma-se em começar a BR-163, que liga Santa Helena (MT) a Santarém (PA); e a duplicar dois trechos da BR-101, um entre Paloça (SC) e Osório (RS), outro entre Natal (RN) e Palmares (PE). Para as exportações, conforma-se em melhorar dois portos – fazer a avenida perimetral em Santos (SP) e aumentar a infra-estrutura de Itaqui (MA). A dura realidade tem encolhido até mesmo os sonhos feitos com dinheiro alheio, as Parcerias Público-Privadas, PPPs. A primeira lista de projetos prioritários incluía 23 parcerias. A burocracia não consegue viabilizar os projetos. Então a lista caiu para 19 obras, depois 12, mais tarde sete. E nada saiu do papel. Hoje, o governo se contenta em tocar no segundo mandato cinco prioridades, como o anel ferroviário de São Paulo e um trecho da Ferrovia Norte-Sul. Estas obras custam R$ 5,2 bilhões – e de dinheiro privado. Não é pouco. Mas não garante o crescimento sustentável de 5% ao ano. Como se vê, a superinfra-estrutura sonhada por Lula mais parece um bicho-de-sete-cabeças.


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