No domingo 2, uma Sapucaí bem longe do Rio de Janeiro abre alas para o maior Carnaval da paróquia. Na Serra da Mantiqueira, pouco antes da Marquês de Sapucaí ferver com o desfile das escolas do Grupo Especial, moradores e turistas disputam um lugar nas “frisas” Com fé e samba no pé, um padre chamado Ronaldo passa na avenida, contagiando São Bento do Sapucaí (SP). Com 362 integrantes, o desfile da escola de samba Mocidade Independente tem a estética de uma procissão. O samba-enredo e a bateria se mesclam a orações e pregações. As fantasias, caprichadas, têm plumas e paetês, mas nada de nudez. Fantasiado de passista, padre Ronaldo José Castro Neto faz a sua apoteose contra o preconceito e em defesa dos excluídos.

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PADRE DO SAMBA
O pároco Ronaldo Castro no desfile de sua escola em São Bento do Sapucaí

A cidade de 12 mil habitantes, a dez minutos de Campos do Jordão, tem o segundo maior Carnaval de rua do Estado, com o bloco do Zé Pereira e seus bonecos gigantes. Mas, desde que o pároco da cidade reinventou a folia às margens do rio Sapucaí-Mirim, há sete anos, São Bento nunca mais foi a mesma. Agora, todo domingo de Carnaval, das 20h30 às 22h30, a avenida principal festeja lotada o desfile da escola de samba do padre.

A Sapucaí do padre Ronaldo ensina. E talvez até revolucione. Ali, a Igreja Católica parece comungar sem medo com o Carnaval. Ainda que seja um Carnaval sem rebolados e regido pelos princípios cristãos. Na Sapucaí que o Brasil inteiro conhece, essa comunhão nunca foi lá muito confortável. Há 35 anos, em 1989, por pressão da Cúria Metropolitana do Rio, a Justiça censurou e Joãosinho Trinta precisou cobrir de lona preta seu Cristo Redentor.

Na Sapucaí do padre Ronaldo, a fé precisa dar liberdade e não rima com preconceito. E isso antecede a era do papa Francisco. Entre os cinco carros alegóricos, uma drag queen chama a atenção no desfile. Logo atrás, um casal empurra uma janela em alusão aos fofoqueiros da cidade do interior. Uma faixa debaixo da janela diz: “Não vemos o que vemos. Nós vemos o que somos. Só veem beleza aqueles que têm beleza dentro de si.” O casal, que trabalha na pastoral do Batismo, tem dois filhos que são drag queens. Na cidade, eles convivem com o preconceito.  “Por isso, pedi que desfilassem”, diz o padre. “A opção de vida é da competência de cada um. O papa Francisco falou disso com sabedoria e caridade. É preciso respeitar. E por que não estar no nosso meio?” Os filhos do casal não saíram na escola, mas sugeriram que um travesti amigo da família pudesse estar à frente da janela alegórica. Assim foi.

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SEM EXCLUÍDOS
Deficientes são destaque

“É o final dos tempos”, alguém brinca no palanque, num misto de choque e fascínio. Ao lado, o prefeito assiste de camarote, mas a prefeitura nada tem a ver com o desfile. “É melhor assim. Não temos investimento público para sermos independentes”, diz o padre. “Nossa barraca vende doces para arrecadar dinheiro.” Cada um paga sua fantasia. Quem desfila nos carros alegóricos é quem os constrói. O prefeito Ildefonso Mendes (PMDB) não perde o desfile-procissão:“Não é a Sapucaí do Marquês, mas é Sapucaí”.

Cessa o samba-enredo “Pra quem tem fé”, do reitor da universidade de Taubaté, José Rui Camargo. O padre Ronaldo reza o Pai Nosso. Em dez minutos, volta o samba. Uma jovem numa cadeira de rodas é destaque de um dos carros alegóricos. A ala das baianas traz senhoras de até 83 anos. Há seminaristas, deficientes visuais e auditivos. O padre quer os excluídos na maior festa da cidade. Nova parada para a oração de São Francisco de Assis. O público acompanha: “…Consolai e ser consolado, compreendei e ser compreendido…”. Na hora da bateria, o padre corre para sambar com a passista. Depois retorna ao carro de som e prega. Ao microfone, defende que a fé não impeça a liberdade. “A fé me dá mais liberdade, me faz menos amargo e menos preconceituoso”, ele diz após o desfile. “A fé brigou muito tempo com a inteligência. Bonito é quando a gente faz a fé interagir com a vida.” Ele olha para a avenida e aponta: “A vida passa aqui o ano inteiro. Passam dores, angústias, gente de todo credo. E agora passamos semeando alegria”.

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Na Sapucaí do padre Ronaldo, a Igreja comunga sem medo com
o Carnaval: "É bonito a gente fazer a fé interagir com a vida"

Aos 52 anos, mineiro de Além Paraíba, padre Ronaldo cresceu pulando Carnaval. “Adoro sambar. Meu sonho é desfilar na Sapucaí.” Artista plástico e ativo nas obras sociais, acompanhava blocos e escolas de samba de Além Paraíba. Hoje, escolas de sua terra natal enviam fantasias usadas. Ordenado pelo Instituto Missionário de São José, em Taubaté, vive em São Bento há 18 anos. “No início foi complicado. Imagine, as pessoas diziam: ‘Carnaval? O que um padre está fazendo no meio?’ Sendo sacerdote, tinha receio de ocupar um espaço tradicionalmente tido como pagão”, conta. “Mas quando fui ordenado, ouvi do bispo: ‘Ensina o que crê e creia no que ensina’. Guardei isso.”

Para fazer samba com beleza, como ensinou Caetano Veloso, é preciso um bocado de tristeza. E foi na dor que nasceu a ideia de criar a escola de samba. Há sete anos, a tristeza foi senhora em São Bento do Sapucaí. Segundo o padre, a morte trágica do ex-prefeito petista Geraldo de Souza Dias, querido entre os habitantes, gerou “uma dor profunda na cidade”. Foi encontrado enforcado e a morte nunca ficou esclarecida. “Vi a possibilidade de uma escola de samba criar um espaço de alegria para trazer a comunidade de volta à lucidez”, relata. “São Bento tem muitas belezas, mas a depressão aqui é forte. Há uma certa infelicidade, algo do comportamento rígido da vida aqui.” Ciente de que um bom samba é uma forma de oração, o padre ganhou o apoio do bispo de Taubaté, dom Carmo Rodhen.

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Este ano, a Igreja Evangélica estreou na avenida. “Demos um testemunho”, diz padre Ronaldo. “É bacana. Nessa avenida cabem todas as Igrejas.” Em 2015, o samba-enredo católico será “Que me perdoem as (coisas) feias, mas beleza é fundamental”, inspirado em Vinicius de Moraes. “Deixamos um rastro de luz, nem que seja de lamparina”, sorri o padre do samba.

Fotos: ERIK CUNHA; Gisele Vitória