Indicado na categoria de melhor ator, o protagonista de "Trapaça" diz que leva o prêmio quem consegue o melhor papel e critica o estilo de vida americano

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Desde que Steven Spielberg escalou Christian Bale, aos 13 anos, para o drama de guerra “Império do Sol” (1987), o ator britânico, que nunca estudou artes dramáticas, demonstra a cada novo trabalho por que é um dos melhores de sua geração. Sua capacidade de desaparecer por trás dos personagens e sua natureza obsessiva em sua preparação mostram que diploma não lhe faz falta. Nesta 86a edição do Oscar, Bale concorre ao prêmio de melhor ator pela performance em “Trapaça”, filme atualmente em cartaz no qual interpreta um vigarista forçado a ajudar o FBI a prender políticos corruptos nos anos 1970. Ele já conquistou uma estatueta de coadjuvante por “O Vencedor” (2010). Dirigido nas duas vezes por David O. Russell, na primeira experiência o ator precisou emagrecer dez quilos. Agora, sem que o roteiro exigisse transformação física, ele engordou 20 quilos por conta própria. “Sou intenso em tudo que faço. Não faço nada pela metade”, diz Bale, eternizado como Batman na trilogia revitalizada por Christopher Nolan, responsável pela bilheteria mundial de US$ 2,4 bilhões. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida durante a 64a Berlinale, principal festival de filmes da Alemanha.

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“Ganhar peso nem era necessário para interpretar o
meu personagem. A ideia foi minha. Meu corpo
reclamou, claro. Até porque fiz do jeito mais perigoso,
concentrando todo o ganho de peso na barriga"

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"Jimi Hendrix sempre foi uma grande inspiração para
mim. O êxtase que ele atingia durante as suas
performances é o que me move na minha profissão”

Fotos: divulgação; Francois Duhamel; Jan Persson/Redferns

ISTOÉ

Como recebeu sua segunda indicação ao Oscar em três anos e agora como melhor ator?  

Christian Bale

Ser indicado é sempre uma honra. Não podia ser diferente. Mas o Oscar é só uma festa que reflete um desejo de celebração. Nada mais que isso. Essa ideia de melhor ator é totalmente equivocada. É apenas uma opinião. Há, sim, muitos atores ruins por aí. Passando desse estágio, quando você começa de fato a atuar, tudo não passa de sorte em conseguir um bom papel. É preciso entender isso quando falamos de Oscar. 

ISTOÉ

Então ganha o Oscar quem conseguir o melhor papel? 

Christian Bale

É isso. São os personagens que fazem a diferença no final. Principalmente os que têm mais alma e humanidade, algo que David (o diretor David O. Russell, de “Trapaça”) consegue explorar como ninguém nas telas. Não é coincidência o fato de eu ter sido indicado por dois papéis em que fui dirigido por ele. Outros atores de “Trapaça” também estão indicados (Bradley Cooper, Amy Adams e Jennifer Lawrence). Os atores só são indicados quando os personagens são absolutamente memoráveis. Mesmo assim há injustiças. 

ISTOÉ

Pode dar um exemplo? 

Christian Bale

Jeremy Renner é tão bom ou até melhor do que nós, que fomos indicados. Então por que ele não foi lembrado pela Academia? Provavelmente porque o seu papel não teve o destaque que poderia ter. Infelizmente muitos atores fenomenais, que põem muitos de nós no chinelo, nunca serão indicados. Portanto, o Oscar tem uma importância exagerada.
 

ISTOÉ

Já pensava assim mesmo antes de conquistar o seu? 

Christian Bale

Já. Nunca fui obcecado em ganhar um Oscar. Isso é uma decisão que depende de você. Não entendo esse tipo de abordagem vinda de um ator. Todos nós somos contadores de histórias. Nunca me senti em competição com nenhum colega de profissão. Seria ridículo. Todo ator é, por natureza, corajoso, por correr riscos e por não ter medo de fazer papel de bobo.
 

ISTOÉ

No seu caso, você compromete até a sua saúde, não? Não tem medo de desenvolver diabetes, como ocorreu com Tom Hanks (o que pode ter sido desencadeado pelas grandes alterações de peso por conta dos personagens)? 

Christian Bale

Não consigo pensar nas consequências. Ganhar peso nem era necessário para interpretar o meu personagem em “Trapaça”. A ideia foi minha. Quando dei por mim, já estava comendo batatas sem parar e não fazia mais exercícios. Meu corpo reclamou, claro. Até porque fiz do jeito mais perigoso, concentrando todo o ganho de peso na barriga, ficando com o contorno do Papai Noel (risos). 

ISTOÉ

Por que quis ganhar quase 20 quilos? 

Christian Bale

O nosso físico sempre diz muito sobre nós, adiantando o que se passa na nossa mente e como queremos ser vistos pelo mundo. Só de olhar para alguém, mesmo que essa pessoa não diga nada, já temos uma ideia de quem ela é. Se a primeira impressão já é vital na vida, imagine no cinema, onde só temos duas horas para mostrar quem é o personagem. Foi por isso que eu quis engordar, para melhor representar Mel Weinberg, o homem que inspirou o meu personagem. Fiquei intrigado quando vi suas fotos. Ele não era o golpista sedutor e vaidoso que eu esperava. Mas, ao mesmo tempo, apesar daquela barriga pronunciada e da peruca, ele conseguia as mulheres mais bonitas (risos). Eu tinha de entender como isso era possível. 

ISTOÉ

De onde vem o seu perfeccionismo? 

Christian Bale

Talvez venha da imagem de Jimi Hendrix, que sempre foi uma grande inspiração para mim. Mesmo que ele agisse daquela maneira porque estava drogado, algo que só Deus pode saber, o êxtase que ele atingia durante as suas performances é o que me move na minha profissão. Jimi tocava sua guitarra até seus dedos sangrarem. Enquanto a maioria dos músicos pararia de tocar, pedindo um band-aid, Jimi continuava. De tão imerso no que fazia, ele nem percebia ou não se importava com a dor. E é isso que eu procuro. Busco o êxtase, mesmo que isso signifique me sacrificar. 

ISTOÉ

Você deve ser um dos poucos atores top de Hollywood que circulam por Los Angeles com uma picape. 

Christian Bale

Adoro a minha caminhonete de segunda mão (risos). É na sua parte traseira dela que eu transporto as minhas motocicletas.  

ISTOÉ

Não se sente tentado pelo luxo que impera em Hollywood? 

Christian Bale

Sempre procurei me distanciar dessa ideia. O que mais eu lamento nessa profissão é o fato de você perder o seu anonimato. Adoraria poder sair por aí para observar melhor as pessoas. Não que eu me julgue melhor que os outros por gostar de dirigir uma picape. Mas isso certamente me mantém com o pé no chão. O glamour nunca me atraiu. Há uma falsa ideia de que esse estilo de vida liberta as pessoas, mas ele as coloca numa prisão. Você acaba se tornando uma criatura de Hollywood, igual a todo o resto. Eu sempre me rebelei contra o glamour. 

ISTOÉ

Você vem de uma família mais simples. Essa sua postura reflete a educação que recebeu? 

Christian Bale

Certamente. Como cresci sem dinheiro, acho que me sentiria culpado. Eu tive uma infância simples e passei a minha juventude empurrando os meus carros que sempre quebravam na rua (risos). Mas eu nunca fui infeliz. É por isso que, se eu abraçasse hoje toda a ideia de riqueza, com carros esportivos e uma entourage, seria o mesmo que dizer que eu não tive o suficiente na minha infância. E isso não é verdade. Isso seria desrespeitoso com os meus pais. 

ISTOÉ

Outro de seus novos filmes, “Tudo por Justiça” (estreia em 7 de março no Brasil), aborda de forma contundente as mudanças de valores na sociedade. Como vê o tema? 

Christian Bale

É algo que me interessa muito. O meu personagem é um homem que vai parar na cadeia por conta de um acidente e, ao retornar à sociedade, se depara com uma nova realidade. Os EUA que ele achava que conhecia, onde as pessoas admiravam certos valores, como responsabilidade e lealdade, não existem mais. Tudo aquilo passou a ser irrelevante. É inacreditável como a noção de ser bem-sucedido nos EUA está cada vez mais ligada ao mundo material. 

ISTOÉ

É isso o que mais o incomoda nos EUA? 

Christian Bale

É certamente uma das coisas. O que acontece com o meu personagem, que levou uma vida honesta, mas acabou negligenciado pela sociedade, representa a situação da maioria das pessoas nos EUA. São pessoas que fizeram tudo que achavam que deveriam fazer e um dia se encontraram quase sem nada. Por que não se fala sobre eles? Porque eles são considerados insignificantes, não dirigem carros caros e suas vidas não são suficientemente interessantes para o público. 

ISTOÉ

Que outras coisas o irritam? 

Christian Bale

Ouvimos tanto falar de patriotismo nos EUA, que chega a me dar vontade de vomitar. Isso porque não é um patriotismo legítimo e positivo. No fundo, as pessoas são xenófabas. Em sua visão distorcida, o patriota simplesmente quer que todos sejam como ele. 

ISTOÉ

Você também é conhecido por não gostar de dar entrevistas para jornalistas americanos.

Christian Bale

É verdade. Principalmente para a televisão. Isso porque os entrevistadores estão mais preocupados com a imagem deles do que com o rumo da conversa. São aqueles apresentadores com sorrisos forçados e muita maquiagem que querem fazer o seu showzinho, sempre exagerando no entusiamo. Eles sempre saem desapontados comigo ao final da entrevista porque eu não entro na onda deles. Não faço autopromoção. 

ISTOÉ

O seu personagem em “Trapaça” tem um grande desejo de se reinventar. Já sentiu o mesmo como ator, principalmente depois que sua imagem ficou associada ao Batman? 

Christian Bale

Já. Foi isso que me atraiu tanto no papel. Ele busca a verdade dentro de si mesmo, mas não consegue deixar de mentir pelo caminho. Todos nós precisamos parar e mudar algo para seguir em frente em algum momento da vida. Seja no plano pessoal, seja no profissional. Batman me marcou, certamente, mas eu já tinha uma variedade de papéis antes dele. O herói só me colocou mais em evidência, o que dificultou um pouco a minha aproximação das pessoas. Eu gosto muito de observá-las de perto. Do contrário, como poderia representá-las?