O Estado brasileiro historicamente negligencia diversas de suas funções éticas, entre elas a de promover a segurança pública. No Estado de Direito, que em essência impõe limites e deveres ao próprio Estado, isso é crime de omissão. Ainda assim, tal omissão não torna ilegítimos os governantes, uma vez que foram democraticamente eleitos pelo povo e que esse mesmo povo tem na ferramenta política do voto a capacidade de também afastá-los do poder. Totalmente ilegítima, isso sim, é a moda que no País está se instalando de práticas truculentas e criminosas que, demago-gicamente, se pretendem justificar justamente pela omissão do Estado na área da segurança – como se um erro desculpasse outro erro. Entre tais práticas está o bárbaro espetáculo de linchamento de pessoas que são pegas, por exemplo, furtando ou causando acidentes no trânsito – foram 19 linchamentos nas duas últimas semanas em todo o Brasil, incluindo o de um motorista que perdeu a direção e atropelou alguém porque passou mal ao volante: teve um infarto, dava tempo de ser socorrido, mas morreu de tomar pancada. Qualquer cidadão tem o aval constitucional de conter alguém que esteja praticando um ato antissocial, só que em contrapartida tem o dever de acionar a polícia. Nem Estados de exceção outorgam a quem quer que seja a função de xerife de plantão para amarrar infratores em postes ou sobre formigueiros, como vem ocorrendo, e insuflar gente a linchar o amarrado.

No atual estágio civilizatório da espécie humana, somente o Estado tem a prerrogativa de julgar e punir (o Estado possui o “monopólio da força”), e a função de fazer justiça não está nas mãos nem nos valores subjetivos de ninguém – está, sim, na razão positiva (“Ordem e progresso” é um lema positivista de Auguste Comte) de um poder do Estado, especificamente o Poder Judiciário. A justiça com as próprias mãos esgarça o Estado Democrático, pois afronta o próprio Direito – é possível haver Estado de Direito sem democracia, mas jamais haverá um Estado Democrático sem direito.

Os linchamentos regridem inevitavelmente ao estágio pré-civilizatório definido por Thomas Hobbes como os tempos nos quais “o homem é o lobo a devorar o homem”. Sucedendo Hobbes e seu Leviatã e antecedendo o clássico “Do Contrato Social” de Jean-Jacques Rousseau, também John Locke nutria esperança numa convivência humana não autopredatória desde que a liberdade se desse “dentro da lei”. Aqueles que lincham, pseudopaladinos da justiça, mentem quando dizem que agem em nome da preservação do interesse geral e da manutenção da ordem. O linchador é tão antissocial quanto aquele que ele agride: lincha para extravasar, disfarçado de defensor da lei, o seu temperamento truculento e igualmente criminoso. Tanto quanto o transgressor, o homem que se arvora a justiceiro agride o Estado de Direito.

Historiadores se dividem quanto à origem da expressão linchamento: alguns a atribuem ao coronel Charles Lynch, que na época da guerra da independência dos EUA reunia grupos para surrar e enforcar civis e militares pró-britânicos, outros a veem inspirada em patente inferior,
a do capitão William Lynch. Ambos lideravam os “comitês para manutenção da ordem” que deram no que deram: a famigerada e incendiária Ku Klux Klan, que cinicamente alegava suprir a omissão do Estado assassinando negros e defensores dos direitos civis – hoje o que se vê em algumas cidades do Brasil é também o linchamento, por exemplo, de bolivianos e homossexuais. O Estado brasileiro deixa a desejar, mas não merece ter as costas tão largas. Basta de gente afrontando o Direito e tentando camuflar os seus atos jogando a culpa no Estado.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ