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Assista a alguns trechos da entrevista

O tenente-coronel da Polícia Militar de São Paulo Adilson Paes de Souza, 49 anos, é um caso singular em uma corporação pouco afeita à autocrítica. Na reserva desde 2012, após 30 anos de serviço ativo, Paes de Souza é um raro defensor do fim da Polícia Militar nos moldes em que ela é concebida hoje. “A PM é uma instituição criada na ditadura militar, seguindo uma ótica que não faz mais sentido no ambiente democrático.” Autor do livro “O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares” e mestre em direitos humanos pela USP, o tenente-coronel estudou um tema controverso no mundo policial: a violência desmedida praticada por PMs. Para entender as razões por trás do problema, Paes de Souza conversou com policiais militares condenados por participar de execuções sumárias. Nesta entrevista, ele explica por que acredita que não há mais espaço para uma polícia que vê parte da população como um inimigo a ser combatido.

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MUDANÇA
“Todo o sistema de segurança pública
precisa mudar no Brasil” 

ISTOÉ – Por que a Polícia Militar mata tanto no Brasil?
Paes de Souza –
As forças de segurança do Brasil são as que apresentam maior letalidade comparadas às de outros países com guerra declarada como o México, com a questão do narcotráfico, ou com países com guerra externa declarada, em determinados períodos com mais mortes. Eu, durante minha pesquisa, entrevistei policiais que cometeram execuções sumárias, foram expulsos da corporação e estão presos. Dos que entrevistei, todos achavam que estavam fazendo a coisa certa. Desenvolveram a conduta com o intuito de servir à sociedade. De maneira errada, nós sabemos. Tanto é que quando foram presos eles não entenderam, tiveram um choque. Mas há também um componente de hipermasculinidade, um assunto pouco estudado por aqui. Muitos se sentem super-homens e acham que podem fazer tudo. É uma questão complexa e pouco estudada no Brasil

ISTOÉ – Mata-se também por vaidade?
Paes de Souza –
Os PMs que eu entrevistei se sentiram injustiçados. Eles acreditavam que estavam defendendo a sociedade ao executar quem eles acreditavam que deveria ser executado. Alguns deles me disseram que sentiram prazer em matar. Eles matando estariam eliminando da sociedade uma pessoa que estava agredindo essa sociedade. Há também na fala deles a questão de ser aceito pelo grupo.  Um deles declarou: “Quando pratiquei homicídio, fiquei aliviado. Porque agora se alguém perguntasse para mim se eu tinha matado, minha resposta seria positiva, eu seria aceito pelo grupo.” Mas o que mais sobressaiu foi: “Nós desenvolvemos mecanismos próprios de aplicar a justiça porque não acreditamos no sistema.” Então há um pouco de tudo, mas o que mais sobressaiu foi o desejo de servir à sociedade, de proteger a sociedade daqueles que eles, por critérios próprios, julgavam maus.

ISTOÉ – Seu sentimento é de que a corporação como um todo vê essa situação como normal?
Paes de Souza –
Creio que a corporação não vê isso como normal. Creio que a polícia é preocupada com esse ponto, mas também creio que ela não saiba como agir adequadamente para evitar que esses comportamentos eclodam. Sabe-se agir depois que eclode, que é instaurar inquérito, pedir prisão preventiva e prender em flagrante delito. Mas aí já aconteceu o fato. O dano já foi praticado. A morte já ocorreu, não tem mais como voltar atrás. Talvez faltem mecanismos e conhecimento para saber lidar com esse problema antes de eclodir. Mas é algo que incomoda a corporação, sim, posso garantir. Embora eu seja crítico da corporação, tenho que reconhecer: preocupa.

ISTOÉ – É possível conciliar o conceito de uma Polícia Militar, com atuação e repressão entre civis, com o conceito de um Estado democrático?
Paes de Souza –
Não, não é possível. É por isso que uma das pautas das manifestações é a desmilitarização da polícia. A atuação de alguns efetivos da PM, e eu não quero generalizar, fez incorporar ao rol de pleitos a desmilitarização exatamente pela inabilidade da própria polícia em lidar com uma manifestação. Se você pegar um vídeo com uma atuação do efetivo policial no controle de distúrbios civis, esse é o nome técnico, em 1968 e retirar a data e o contexto e comparar com o que vimos em 2013, não muda nada. É idêntico.

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“A inabilidade da própria polícia em lidar com as
manifestações fez com que o tema da desmilitarização
entrasse no rol de demandas das ruas”

ISTOÉ – Por que isso acontece?
Paes de Souza –
O nosso sistema de segurança pública é um sistema concebido na ditadura, isso é fato. A Polícia Militar de São Paulo foi criada menos de dois anos após o AI-5, por exemplo, na lógica da Doutrina da Segurança Nacional, que embasou toda a onda repressiva na América Latina nos anos 60 e 70. É a lógica em que há sempre um inimigo a ser combatido. Esse sistema perdura até hoje. E me parece um anacronismo. Quando se promulgou a Constituição de 1988, a primeira medida no campo da segurança pública deveria ter sido se questionar se essa lei, se esse sistema, era o ideal para um período democrático. Se não é, o que fazemos? Mudamos? Não houve esse tipo de questionamento.

ISTOÉ – Essa lógica não mudou mesmo após o fim da ditadura?
Paes de Souza –
Há relatos que indicam a existência de execuções sumárias pelas polícias militares. Se esses relatos forem comprovados, mostra-se que essa lógica se faz presente. Não faço afirmações peremptórias porque eu teria que ter provas para comprovar. Mas se os relatos de abusos se comprovarem, é mais uma prova de que a doutrina da Segurança Nacional está presente entre nós.

ISTOÉ – Mas o sr. acredita que, mesmo com os erros, ele é um sistema que apresenta alguma eficácia no combate à criminalidade?
Paes de Souza –
Da maneira como é hoje, não. Acho que o modelo atual deixa a desejar tanto na prevenção como na repressão em si do delito. O índice de solução em delitos graves é de 3%, baixíssimo. Isso contribui para o aumento da sensação de insegurança. Então eu creio que esse modelo de repressão já não responde mais aos nossos anseios.

ISTOÉ – A PM, então, precisa acabar?
Paes de Souza –
Acabar é um termo muito forte. Não existe democracia sem polícia. A polícia é uma das maneiras pelas quais o Estado se manifesta. Agora, precisa mudar. O que precisa é uma nova polícia, que não seja meramente a subordinação de uma policia à outra. Não é essa a questão. Até porque existem os mesmos relatos de abusos de direitos humanos e ineficiência na Polícia Civil. O modelo por si só não é eficiente.

ISTOÉ – O sr., então, é a favor da desmilitarização da Polícia Militar?
Paes de Souza –
Sim, eu sou a favor. Mas acho que a desmilitarização precisa vir num contexto mais amplo: o da reforma do sistema de segurança pública. Não é só mexer na PM. Eu não sei como, precisa sentar e discutir, mas todo o sistema precisa ser reformulado, iniciando pelo prisional. Em dois artigos da Constituição de 88 aparece expressamente que as polícias militares e os bombeiros são militares do Estado. É preciso tirar isso da Constituição. Não é uma questão de semântica, é uma questão de conceito. O assunto é urgente, mas precisa ser resolvido com calma.

ISTOÉ – O sr. prevê uma resistência interna muito grande?
Paes de Souza –
É óbvio que existe uma resistência, mas eu não saberia dizer qual a dimensão dela. O próprio conceito de desmilitarização nunca foi bem explicado, é um tabu. É claro que, se eu não sei exatamente o que é isso, de antemão eu resisto. Acho que ambas as corporações, as polícias civil e militar, resistem.

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"A Rota, o Bope, enfim, as chamadas tropas de elite das
polícias militares, foram apropriados por um discurso político que
quer propor uma solução imediata para os problemas de segurança”
 

ISTOÉ – Mas por que a Rota, em São Paulo, ou o Bope, no Rio, que são as tropas de elite da Polícia Militar, que têm essa designação especial, são vistas como das mais violentas?
Paes de Souza –
Essa questão de você definir algo como elite, principalmente uma organização policial, sempre traz a ideia do algo mais e esse algo mais, dependendo do discurso que se adota em determinado momento, pode passar uma ideia de mais violência ou menos violência. Acho que esse imaginário da Rota e do Bope é a apropriação de uma instituição ou de uma marca de uma unidade da polícia militar por um discurso político que quer propor uma solução imediata. Nós não podemos perder isso de perspectiva, que é o discurso de que eu tenho a solução pronta para a violência e acaba disseminando essa ideia de violência.

ISTOÉ – Como isso impacta o policial nas ruas?
Paes de Souza –
O policial vê esse discurso e vai ter uma falsa percepção do que é uma autoridade. Ele vai achar que ser autoridade  é ser  truculento, violento. Ele vai incorporar esse discurso na prática e vai praticar atos de violência. Tudo isso vem do discurso de que essa tropa de elite pode trazer uma solução mágica para os problemas de segurança pública. Agora, é importante frisar que determinados setores da imprensa difundem esse conceito em larga escala. E essa fala pode exercer um efeito educacional nefasto na cabeça desses policiais militares, como em boa parte da população. É importante lembrar que dentro da doutrina da Segurança Pública há sempre um inimigo. Agora ele apenas mudou.

ISTOÉ – Quem é o inimigo hoje?
Paes de Souza –
De acordo com a doutrina de Segurança Nacional, existe um inimigo a ser combatido. Na época da ditadura militar, era o comunismo. Hoje o inimigo seriam jovens e pessoas de determinadas classes sociais, determinado perfil e que vivem em determinadas regiões das grandes cidades. Concordo com essa tese, desde que eu embase a minha fala em relatórios de violência produzidos pelo próprio Estado e pela sociedade civil, pesquisas sérias, que mostram o alto índice de jovens na faixa de 19 a 24 anos de idade, infelizmente com uma cor de pele mais escura e de camadas sociais desprivilegiadas, como as maiores vítimas.

ISTOÉ – O sr. passou 30 anos na PM. Como é a reação dos seus colegas de farda a tantas críticas?
Paes de Souza –
Com quem eu tenho mais contato, normal. Elogiaram o livro e elogiaram a dissertação. Com quem não tenho tanto contato, quando encontro, eles não tocam no assunto, mas são extremamente corteses, educados e carinhosos, até. Oficialmente, nunca recebi nenhuma crítica da corporação. Extraoficialmente, via redes sociais e telefonemas, muita crítica positiva.

ISTOÉ – O sr. já foi ameaçado?
Paes de Souza –
Não, nunca fui ameaçado.

ISTOÉ – O sr. teme por sua segurança?
Paes de Souza –
Como cidadão que vive na região metropolitana de São Paulo, com esses índices de violência do jeito que estão, com essa urbanização caótica, e como membro dessa sociedade, que também sente a insegurança, eu tenho medo, sim.

FOTO: FELIPE GABRIEL