Atenção, senhores passageiros: afivelem os cintos porque a turbulência vai piorar. O caos que se abate sobre o setor aéreo nas últimas semanas está projetado pelas autoridades para se estender pelos próximos 60 dias. Pelo menos. Significa que o período do Natal, do Ano-Novo e das férias de verão, quando a procura por vôos aumenta em até 25%, será de espera, irritação e angústia nos aeroportos do País. Tudo de novo, com uma agravante: o apagão aéreo está levando o Brasil e seu tráfego anual médio de 83 milhões de passageiros a entrar na lista dos lugares mais perigosos do mundo para a realização de pousos, decolagens e trânsito no ar, segundo os organismos internacionais de controle aeronáutico. Até o ministro da Defesa, Waldir Pires, teve de se convencer da gravidade da situação.

Na segunda-feira 13, quando os principais aeroportos brasileiros estavam repletos de passageiros sem previsões seguras sobre o início de seus vôos, Pires cometeu uma das declarações mais desastradas do ano. “Não houve nada. Quantas vezes temos atrasos de duas ou três horas?”, replicou ele diante de repórteres atônitos, que procuravam explicações sérias para o fato de, oficialmente, 42,3% das 1.487 decolagens programadas para aquele dia registrarem um atraso médio superior a quatro horas.

Naquela mesma tarde, porém, durante o trajeto com partida no Rio de Janeiro e destino em Brasília, o jatinho Lear Jet da FAB que transportava o ministro envolveu-se no que, em linguagem aeronáutica, pode se interpretar como um “quase acidente”. No instante em que o aparelho estava a 180 quilômetros da capital federal, os controladores no Cindacta-1 perceberam que a aeronave entrara na mesma rota de um Airbus da TAM que acabara de decolar rumo a São Paulo. O jatinho com o ministro a bordo estava sendo monitorado pelos militares que cuidam da defesa aérea, responsáveis por vôos militares. Já o avião da TAM voava sob os olhares dos controladores que operam a aviação civil, os vôos de carreira. Essas duas equipes usam monitores e ocupam salas diferentes na torre de controle do aeroporto de Brasília. Ao perceberem a possibilidade de choque, os controladores dos vôos de carreira orientaram o piloto do avião da TAM a fazer o que no jargão técnico se conhece como manobra evasiva. Significa mudar inesperadamente de rota, o que foi feito. O episódio gerou um relatório reservado encaminhado de imediato aos superiores dos controladores de plantão naquela tarde. Waldir Pires, que ao desembarcar em Brasília afirmou que “não houve nada”, só soube do incidente horas depois.

Esse episódio não foi o único a demonstrar que as coisas não andam bem nas
torres de controle do País. Dias antes da colisão entre o jatinho Legacy e o Boeing
da Gol, no dia 29 de setembro, um grande susto tomou conta da sala de controle aéreo em São Paulo.

O sistema estava congestionado. Dois aviões da mesma Gol se preparavam para pousar no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Eles tinham números de identificação semelhantes: 7454 e 7464. O controlador responsável por orientar os pilotos das duas aeronaves disparou uma instrução para um deles. Só que foi o outro que cumpriu a ordem. O resultado foi que um avião virou justamente na direção do outro. A tensão se abateu sobre a equipe em terra. O controlador que deu a orientação errada, em meio a um surto nervoso, pediu para sair da sala. Houve gritaria. “Você me jogou para cima da outra aeronave”, reclamou um dos pilotos pelo rádio. Uma manobra rápida e um pouco de sorte evitaram o pior. No começo de outubro, porém, aconteceu um novo “quase acidente”. Um avião da Gol e outro da American Air Lines se cruzaram no ar, no Estado de São Paulo, a uma distância de 100 pés, ou 33 metros – um décimo da separação vertical considerada minimamente ideal, de 330 metros.

ISTOÉ teve acesso a esses registros, o que não significa que outros episódios anormais não possam ter ocorrido nos últimos tempos. Já se forma entre executivos do setor de seguros a certeza de que, a manter-se o atual cenário, os valores das apólices de companhias aéreas subirão à estratosfera. “Isso não é bom nem para as seguradoras nem para as empresas de aviação, mas é o que pode acontecer”, diz um dirigente de uma empresa seguradora. A Justiça desde já está sendo congestionada por pedidos de indenização de vários tipos. Passageiros que perderam compromissos em razão dos atrasos, operadoras de turismo que tiveram pacotes cancelados e as próprias companhias aéreas começam a entrar com ações que exigem indenização da parte do governo – o responsável pelo controle do tráfego aéreo. Somente as companhias estimam em R$ 4 milhões por dia de atraso o valor de seus prejuízos. “Todas as luzes vermelhas estão acesas”, admite Nilton Zuanazzi, presidente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Ele falou a ISTOÉ durante o feriado da quarta-feira 15, pelo telefone, enquanto esperava no aeroporto de Brasília a decolagem de seu vôo para Porto Alegre, atrasado mais de quatro horas.

Na raiz do caos aéreo está a situação dos controladores de vôo. Eles são 2,6 mil em todo o País. Calcula-se, porém, que não mais que 2,2 mil fiquem em frente dos monitores, controlando os vôos. Os outros 400 fazem serviços administrativos, de retaguarda. Para efeito de comparação, a Espanha, cujo tráfego aéreo é menor que o do Brasil, conta atualmente com 3,1 mil controladores, todos eles voltados para essa função específica. No Brasil, do contingente total, 2.122 controladores são militares, a grande maioria sargentos da Força Aérea. Ganham soldos de, no máximo, R$ 3,2 mil após 30 anos de serviço e não podem usar nem os mesmos refeitórios nem os mesmos banheiros que seus chefes, os tenentes. Quatrocentos controladores são civis, contratados pela Infraero e regidos pela CLT, com salário médio de R$ 3 mil. Os outros 100 são civis, contratados pela FAB. Eles vivem num regime híbrido entre as leis trabalhistas civis e o regime militar.

Há 15 anos, o País tinha 3.200 controladores. De lá para cá, a frota de aeronaves e o tráfego aéreo praticamente duplicaram, mas o número de controladores só fez diminuir. A maioria saiu porque foi aprovada em concursos para empregos melhores. Poucos entraram nas vagas abertas. Outro problema é a queda da qualidade dos profissionais. Estima-se que, hoje, apenas 10% dos controladores falem fluentemente o inglês, idioma oficial usado nos contatos com pilotos estrangeiros.

Tensos, os próprios controladores apontam outro problema do sistema: a ineficiência dos equipamentos. Nas salas de controle, os consoles em que aparecem os milhares de aeronaves que diariamente cruzam os céus do País são modernos. A deficiência estaria em parte dos radares e das torres de transmissão de rádio, consideradas ultrapassadas. “As quedas no sistema são comuns”, diz um sargento-controlador que pede para não ser identificado. “Isso limita a nossa capacidade de controle”, reclama. “Essa crise é resultado do colapso do sistema, com a saturação do espaço aéreo, da nossa capacidade de controle e dos nossos recursos humanos”, afirma o também sargento Carlos Trifilio, presidente da Associação dos Profissionais de Controle de Tráfego Aéreo de São Paulo (Apacta).

Os protestos dos controladores têm irritado a cúpula da Força Aérea. O aquartelamento ordenado na semana passada foi uma ameaça de endurecimento por parte do governo. Teve de ser suspenso porque a administração federal temeu uma radicalização no quadro. Na quarta-feira 15, feriado da Proclamação da República, os sargentos controladores de vôo se reuniram à tarde nos arredores de Brasília para uma assembléia. Eles não podiam ser flagrados nessa reunião. Pelo regulamento das Forças Armadas, três ou mais militares reunidos sem autorização superior configuram um motim. Resultado: os encontros são cercados de segredo. Os contatos são feitos via internet. Pouco se fala ao telefone, principalmente nos celulares. Apesar do temor, a assembléia de quarta deu certo. Dela participaram cerca de 100 militares. A conclusão do encontro foi que a categoria não deve baixar a guarda para conseguir melhores soldos e condições de trabalho.

Na véspera, a terça-feira 14, um dia após novo ápice da crise nos aeroportos, o presidente Lula chamou ao Palácio do Planalto o ministro Waldir Pires e o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno. Deu uma ordem incisiva. “Vocês têm de resolver isso. Imediatamente”, disse Lula. Dentro do governo, a tendência é desmilitarizar a carreira, como aconteceu em Portugal há 30 anos, e como está sendo feito neste momento na Argentina. Por essa proposta, a profissão de controlador de vôo, hoje dividida em três diferentes categorias e rachada devido às diferenças salariais e de carga horária, passaria a ser unificada. E sairia da égide da Força Aérea. “A carreira civil é uma carreira que o mundo adotou”, disse o ministro Pires a ISTOÉ na quinta-feira 16. Ele tinha acabado de receber do brigadeiro Bueno os nomes dos militares indicados para integrar um grupo de trabalho – sinal de paz diante da resistência da cúpula da Aeronáutica à proposta de desmilitarização do controle de tráfego aéreo. A desmilitarização é a principal reivindicação dos sargentos-controladores. “A criação de um plano de carreira é importante porque na estrutura militar o controlador não é controlador de fato, mas sim um sargento que não pode ser diferenciado do restante da tropa para não criar atrito”, defende Wellington Rodrigues, presidente da Associação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo (ABCTA).

No Brasil, o controle aéreo é dividido em quatro grandes áreas, sediadas em Brasília, Manaus, Recife e Curitiba. A de Brasília é, de longe, a mais problemática. Por um motivo simples: dali são controlados todos os vôos que chegam e saem do eixo Rio–São Paulo e da própria capital federal, as três praças de maior movimento de aeronaves do País. Perto de 80% de todo o tráfego aéreo nacional passa pelo centro de controle brasiliense.

A crise no aparato de controle de tráfego aéreo brasileiro não é nova. Há tempos
existe o déficit de pessoal. O problema é que, como quase todo o sistema está sob controle militar, as reclamações dos controladores não ultrapassavam os limites da caserna. Nos arquivos da Força Aérea, há centenas de “relatórios de perigo”, como são chamados os informes destinados a comunicar incidentes do sistema de controle. “Muita coisa era comunicada e ficava engavetada”, diz um militar ligado ao tráfego aéreo. Com isso, o gargalo só foi se fechando. Do lado de fora, pouco ou
nada se sabia sobre esse sistema que há tempos vive à beira do colapso. “Eu mesmo não sabia”, diz o ministro da Defesa, Waldir Pires. O estopim acendeu com a tragédia da Gol, quando 154 pessoas morreram. Como havia risco de os controladores serem apontados como co-responsáveis pelo desastre, a categoria resolver pôr em prática um movimento para expor as fraturas do sistema. E passou a resistir, negando-se a controlar simultaneamente mais do que 14 aeronaves, número indicado por padrões internacionais. Isso causou os primeiros atrasos, que, ao que tudo indica, podem virar rotina