Houve um tempo em que, às primeiras horas da manhã, os presidentes se sentavam com o ministro responsável pelo setor de inteligência do governo. Esse hábito perdurou de Castelo Branco, o marechal que criou o Serviço Nacional de Informações (SNI), a Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo que extinguiu o “serviço”, mas, com a outra mão, criou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Desde que o governo Lula começou, a Abin entrou em crise profunda. O presidente jamais convidou para as reuniões do círculo íntimo do poder o ministro da área, general Armando Félix, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Ele olhava a Abin com desconfiança. Com o tempo, foi se afastando cada vez mais de Félix, esvaziou-o, passava semanas sem recebê-lo, até decidir extinguir seu cargo no próximo governo. Agora, Lula está decidido a rebaixar a própria Abin. Dias atrás, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, levou ao presidente um plano para fundir a Polícia Federal com a Abin. Com a PF no comando, naturalmente. Lula foi sincero: “Gostei da idéia, estou de acordo!”

A Abin, segundo esse plano, pode se tornar um simples departamento da Diretoria de Inteligência da PF (DIP), na qual nascem as maiores operações policiais da instituição. Será como se a CIA, a agência onde operam os cinematográficos espiões americanos, de repente tivesse de prestar contas aos policiais do FBI. “Queremos um casamento de véu e grinalda”, explica um ministro. Lula já mandou Thomaz Bastos preparar uma minuta de legislação para permitir a encampação. Quando sair, irá sacramentar uma espetacular inversão de comandos. Por muito tempo, afinal, a PF foi um braço policial do SNI, dirigido por coronéis do Exército. A partir da nova legislação, porém, terá controle sobre a velha estrutura. A medida provisória sobre o assunto deve ficar pronta nesta semana.

Muitas das articulações pela extinção da Abin estão sendo feitas sem o conhecimento do general Félix. Na semana passada, ele estava em missão
pelo Oriente Médio, junto com o diretor-geral da Abin, Márcio Buzanelli. Lula já o chamou de volta. Mandou que se apresentasse a seu gabinete assim que retornar das Arábias. Mas a notícia vazou, e uma conspiração teve início em Brasília. Na segunda-feira 13, analistas e agentes da Abin mobilizaram-se para tentar reverter
a situação. “Se eles fizerem isso conosco, vamos ter que abrir nossos arquivos”, disse numa reunião fechada Nery Kluwe, presidente da associação dos funcionários da agência, a Asbin. “Muita gente pode cair”, acrescentou enigmático. Foram enviados emissários do corpo de elite da Abin para uma série de contatos
sigilosos com integrantes do Congresso, do Exército e da PF. Na terça-feira 14, quatro representantes da Abin mantiveram um encontro secreto com um assessor direto de Lula.

Na PF, costura-se um pacto com uma das facções internas de delegados para que as duas instituições permaneçam separadas. O plano passa por levar ao presidente Lula duas listas tríplices para a nomeação dos substitutos dos atuais diretores da PF, Paulo Lacerda, e da Abin, Márcio Buzanelli. O grupo ligado a Lacerda defende a sinergia da PF com a Abin. Já Buzanelli quer a manutenção da Abin como está, voltada à espionagem no Exterior e ligada aos centros de inteligência das Forças Armadas. Os analistas civis da Abin, por sua vez, querem se livrar do GSI e dos militares, mas preferem ficar subordinados diretamente a Lula, no mesmo status da Advocacia Geral da União. Na PF, os delegados reclamam da falta de colaboração da agência: “Nunca recebemos informação palpável da Abin que servissem para uma ação concreta da polícia”, queixa-se um dos diretores da PF.

Toda essa movimentação só existe por conta da conjunção de dois fatores. Primeiro porque, no governo Lula, a PF apareceu como nunca: realizou até a semana passada 162 operações especiais e prendeu 4,5 mil pessoas. Em paralelo, a Abin, com 1,7 mil funcionários, entrou em parafuso. A primeira diretora da agência, a psicóloga Marisa Del’Isolla, foi herdada do governo FHC. Ainda funcionava bem. Foi sob sua batuta que o setor de Operações, coração de qualquer agência, descobriu uma rede de agentes contrabandeando urânio brasileiro para a Coréia do Norte. O relatório foi passado para o Planalto, mas nenhuma providência foi tomada. Começou aí a desconfiança mútua. Hoje, acredita-se dentro da Abin que aquele urânio tenha sido a matéria-prima da bomba atômica que os coreanos explodiram semanas atrás. Ocorre que a mesma equipe também arquivou informes de que a campanha de Lula em 2002 teria recebido dinheiro das Farc, da Colômbia. Não tinham provas, mas vazaram o documento para a imprensa. Marisa foi derrubada pelo ex-ministro José Dirceu, que colocou em seu lugar o delegado paulista Mauro Marcelo Lima e Silva. Foi ele quem, atendendo a um pedido de Dirceu, mandou seus agentes investigarem as atividades da multinacional Unisys dentro da Previdência, e acabaram atingindo a Unisys e o grupo de Roberto Jefferson nos Correios.

Hoje, Lula desconfia de tudo que venha da Abin. Só trata seus analistas pelo pejorativo de arapongas e acha que a agência trabalha contra ele. Não pede nada à Abin e, toda vez que precisa de alguma informação, recorre a Márcio Thomaz Bastos. Lula não tem afinidades pessoais com Félix. O general operou pela derrubada do paulista Mauro Marcelo e para que no lugar dele ficasse Buzanelli, um civil ligado aos militares. Buzanelli instalou no setor de Operações o agente Thelio Braun, burocrata que diariamente vai para casa às 18 horas, em ponto, e que deu a ordem aos 320 analistas para que produzam 500 relatórios por ano. Os analistas da Abin confessam que já não produzem nada de relevante. Quando estourou o caso do mensalão, o general Félix admitiu de público que não repassava ao presidente as informações que recebia da Abin. Desde então, os analistas não passam nada de relevante para Buzanelli, que não repassa para Félix, que nada entrega a Lula. Nem Lula pede nada a eles. Destino insólito o de uma instituição que já foi considerada onividente, onisciente e onipotente.