Na infância, a paulista Ana Carolina Reston Marcan usava sempre a mesma resposta para fugir dos doces oferecidos pelos primos na piscina da chácara em que foi criada, em Jundiaí (SP). “Não quero, não quero. Vou engordar se comer doce, a moça falou na televisão. Quero ser modelo e não posso engordar.” Tinha oito anos, os olhos esmeralda, a pele alva, a perna fina, os dedos longos e a precoce certeza de quem havia decidido o seu caminho. Na casa de cinco quartos, desarrumava gavetas e armários para desfilar fazendo caras e bocas. Ela mergulhou fundo na determinação de conquistar os estúdios e as passarelas – e também na de comer pouco. Cada vez mais pouco. Tão fundo que encontrou rápido os estúdios e as passarelas do Brasil, do México, do Japão e da China, mas também uma anorexia nervosa devastadora e um violento processo de bulimia. E a morte. Tudo durou 13 anos. Na madrugada de terça-feira 14, aos 21 anos, Carolina morreu com apenas 40 quilos. Um espanto para quem tinha 1,72 metro de altura. Um peso mais apropriado para uma menina entre 11 e 12 anos e 25 centímetros a menos do que ela.

A anorexia é uma doença psiquiátrica que leva progressivamente a pessoa a parar de se alimentar. A bulimia é o ato de provocar o vômito, e mais raramente a desenteria, após comer. Não raro, as duas enfermidades caminham juntas – os especialistas as tratam como “irmãs gêmeas”. No caso de Carolina, o quadro anoréxico se instaurou aos 17 anos, três depois de ela ser descoberta por um representante da agência Ford num shopping de Jundiaí. E o bulímico veio logo depois. Alguns dados simples mostram o que essas duas doenças fizeram com a modelo. O Índice de Massa Corporal (IMC) é uma ferramenta para medir a relação entre altura e peso. Um corpo com IMC abaixo de 18,5 tem altas chances de apresentar problemas de saúde por falta de peso. Abaixo de 17, está desnutrido. Com seus 40 quilos escondidos em 1,72 metro de altura, Carolina morreu com um IMC de 13,52. No limite da desnutrição, ela deveria pesar 50,3 quilos. Com o índice no piso do aceitável, isto é, em 18,5, a marca da balança deveria bater nos 54,7 quilos. “Não é possível que ninguém, nem o porteiro da agência, tenha notado só de olhar que essa moça corria perigo”, espanta-se o psiquiatra Taki Cordás, da Universidade de São Paulo, um dos maiores especialistas em distúrbios alimentares do País.

A questão torna-se mais procedente diante da evidência de que a modelo deu
sinais nos últimos anos. Muitos deles. Um dos últimos veio na forma de um constrangimento público. Em meados deste ano, Carolina foi a uma festa de aniversário organizada por uma prima chamada Walquíria, em Pirapora do Bom Jesus (SP), onde ela passou parte da vida. Primeiro, disse estar com náuseas por causa do cheiro do churrasco. Horas depois da chegada, permitiu-se colocar na boca meio pão francês com uma fatia de carne. Passou então a reclamar de um incômodo gástrico – e a culpar por isso o meio pão com quase nada. As ofertas seguintes foram logicamente recusadas. Depois do parabéns, fez de tudo para driblar o bolo, mas acabou cedendo aos apelos da prima. Imediatamente após engolir o primeiro pedaço, correu desesperada em busca de um banheiro para vomitar. Não houve tempo: a cena se deu numa escada da casa, diante dos olhos de parentes e convidados.

Meses depois, no último dia 25 de outubro, ela seria internada. Queixava-se das dores de um cálculo renal. Ao chegar ao hospital, comeu um único dos dez biscoitos de água e sal oferecidos, deu três goles numa xícara de chá… e desmaiou. Apresentava quadro de insuficiência respiratória e baixíssima pressão arterial. Foram 21 dias na UTI até a madrugada em que morreu. Neste período, os médicos estranharam sua resistência a vários medicamentos. Por isso, pediram a uma prima, a engenheira Ekta Reston, que verificasse se havia alguns medicamentos guardados no apartamento de Daniela Grimaldi, a amiga com quem a modelo estava morando há 30 dias.

O resultado da busca surpreendeu. “Eles não acreditaram quando cheguei com uma bolsa da Carolina, do tamanho de um tijolo, cheia de remédios”, lembra Ekta. Eram analgésicos e antiinflamatórios variados, antibióticos e, sobretudo, moderadores de apetite e comprimidos manipulados para emagrecer à base de anfetaminas, que ela tomava três vezes ao dia. “Por causa do cálculo renal, Carol misturava remédios para emagrecer com outros contra dor. Como bebia nas baladas, os medicamentos perdiam o efeito. E no dia seguinte ela tomava ainda mais”, conta Ekta. Pouco antes de morrer, a modelo recebeu de um médico a recomendação de tomar o analgésico Buscopan nas crises renais agudas. Na primeira, ingeriu dez comprimidos de uma só vez.

A amiga Daniela foi uma das últimas a alertar a mãe da modelo, dona Miriam, sobre os hábitos da filha. O fato de a modelo se fechar várias vezes por dia no banheiro, com o chuveiro ligado, a intrigava. Carolina já tinha indicado à amiga três comprimidos “milagrosos” para emagrecer. Certo dia, ao perceber que a modelo não havia trancado a porta, Daniela resolveu entrar. Encontrou-a com o dedo na boca para vomitar – ou miar, um termo usado pelos anoréxicos. Ligar o chuveiro para disfarçar o barulho característico é o principal artifício dos que sofrem com o problema. “Eu sabia que aquele comportamento era um mal, mas, por ignorância – eu confesso –, achava que iria sarar”, disse dona Miriam, aos prantos, a ISTOÉ.

Em abril passado, quatro meses depois de voltar de sua última temporada internacional, no Japão, Carolina deu novas senhas, desta vez públicas. Em entrevista a um jornal paulista, admitiu que comia muito pouco e não controlava
a anorexia e a bulimia. “Tenho uma imagem distorcida de mim. Ainda me acho gorda”, confessou. “No Japão, tinha 46 quilos e, com 1,74 metro, ainda tomava remédio para emagrecer. Cheguei a pesar 42”, contou. Seu maior sonho era brilhar nas passarelas, mas a altura não era ideal para os desfiles, reservados às meninas a partir de 1,75 metro. Seu forte eram campanhas e editoriais de moda que valorizavam o rosto e partes do corpo. Mas, para acalentar o sonho, costumava aumentar em dois centímetros sua altura real.

Foram apenas os últimos das dezenas de avisos dados nos últimos anos. Em 2004, ela fez sua primeira temporada no Exterior, em Hong Kong e em outras cidades chinesas. A prima Ekta conta que, nos telefonemas, ela reclamava das comidas com uma insistência suspeita. Achava-as “sujas e pesadas”. “Na verdade, ela repetia aquilo para se convencer de que existia um motivo justificável para não comer”, analisa Ekta. Enquanto se animava com o bom momento – suas fotos com roupas Dior eram estampadas em outdoors nas ruas de Hong Kong –, Carolina mergulhava de vez na anorexia. “Ela levava umas poucas maçãs na bolsa. Era água mineral, Coca-Cola light e a fruta. Nunca a vi comendo outra coisa”, lembra o advogado Thiago Mirales, 23 anos, que conviveu com a modelo por lá. Em outras ocasiões, substituía as maçãs por tomates.

De volta ao Brasil, passou um tempo em casa e, em meados de 2005, embarcou para um trabalho na Cidade do México. Missão cumprida, recebeu da agência a sugestão de ficar mais tempo, pois havia chance de novos contratos. Engano. Todas as possibilidades foram derrotadas pela falta de peso. As colegas insistiam para que ela voltasse ao Brasil e se tratasse. As visitas ao banheiro para miar começavam a ser notadas. Mas Carolina insistiu em ficar. Tinha despesas a saldar com os agentes e pretendia voltar com algum dinheiro para ajudar a mãe a concluir uma casa. “Mas nada apareceu, nem mesmo bicos em feiras e eventos, o último recurso quando a coisa aperta”, revela Fernanda Heringer, uma das cinco modelos que dividiam o apartamento com Carolina no México. “Ninguém trabalhava com ela porque as roupas ficavam grandes, entende?” No México, faltava a Carolina dinheiro para pagar todas as despesas. Inclusive as com maçãs e tomates.

Ajudada pela dona da agência brasileira L’Equipe, Lica Kohlrausch, Carolina
foi contratada pelo grupo Chock, um dos mais importantes do México. Dias
depois, a agente brasileira recebeu um telefonema preocupante da colega
mexicana. “Ela disse que a Carol estava muito magra. Fiquei preocupada, pois a Stela conhece o ramo, mas não imaginei que ela estivesse anoréxica”, disse Lica. Mesmo assim, Carol bateu o pé. Queria passar uns tempos no Japão. Convidada a fazer um catálogo da grife Giorgio Armani para o mercado asiático, embarcou em outubro de 2005 para Tóquio. Na sua cabeça, as medidas reduzidas ajudariam a alavancar a carreira naquele país. O corpo fino assustou Armani e seus representantes. E eles, mesmo diante do desafio de encantar mulheres num país que cultua um visual feminino delgado, sem curvas, à Lolita, quase infantil, romperam o contrato com a modelo.

Sem dinheiro, Carolina teve US$ 2,8 mil (R$ 6,4 mil) emprestados pela L’Equipe para comprar a passagem de volta. Na passagem pelo México, enfraquecida, precisou de alguns dias de tratamento num hospital e depois de recuperação na casa de uma modelo russa antes de embarcar novamente, desta vez para o Brasil, no final de dezembro. Seus últimos meses foram apertados. Os poucos trabalhos que surgiram até o 25 de outubro em que entrou no hospital renderam-lhe R$ 300, R$ 500, no máximo R$ 1 mil. A agência disse a ISTOÉ que não irá cobrar da família a despesa com a passagem.

O peso de um corpo em determinado período da vida é fruto de uma série de fatores, inclusive genéticos. Quem tenta mantê-lo exageradamente abaixo do limite submete o organismo a um perfil que ele, por natureza, não deve ter. “Nem todas são como a Gisele Bündchen, que come e não engorda. Eu também queria ser inteligente como o Albert Einstein, mas meus neurônios são os do Marco”, compara o psicólogo Marco Antônio Tommaso, que já atendeu 1,8 mil modelos – entre elas Carolina. No caso das modelos, desafiar os limites pode significar mais trabalho e dinheiro – e aí mora o perigo. “A Carol não sucumbiu às pressões de uma agência em particular, mas de um mercado grotesco. Eles não querem seres humanos, e sim cabides”, ataca Mirtes Reston, tia da modelo.

Recentemente, os organizadores da Semana de Moda de Madri recusaram modelos com IMC abaixo de 18, algo como 57 quilos para uma mulher de 1,80 metro. Uma boa medida seria adotar definitivamente parâmetros como este. “Não basta apenas dizer que não incentivam isso e lavar as mãos”, diz o psiquiatra Cordás. “Quando os pais deixam seus filhos, a agência ou empresa se torna responsável. Deveriam manter uma estrutura médica para identificar os problemas”, opina ele. Carolina deu vários avisos. Não custa dar mais alguns.