03/10/2007 - 10:00
Dos 126 mil brasileiros que têm infarto do miocárdio por ano, apenas 26 mil recebem o tratamento certo. Os dados são da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica. Isso quer dizer que a maioria dos infartados não é atendida com a rapidez e a qualidade necessárias para evitar seqüelas ou morte. No momento em que estão sofrendo o ataque cardíaco, deveriam receber a aplicação de uma droga anticoagulante na veia para conter a formação do coágulo que entope artérias ou serem submetidos à angioplastia – introdução de um cateter na artéria atingida com o objetivo de desobstruí-la. Mas, a contar pelos números, isso não acontece como deveria. Esse quadro está no centro das preocupações do cardiologista Sérgio Timerman, diretor do Laboratório de Pesquisa e Treinamento em Emergência do Instituto do Coração, em São Paulo, e artífice da nova faculdade de Medicina Anhembi-Morumbi, primeiro investimento no Brasil do grupo americano de ensino Laurent, dono de escolas em 20 países. "Estamos fazendo legiões de seqüelados no País por culpa do atendimento médico ineficiente. Dar a essas pessoas a assistência correta é uma questão humanitária com sérias implicações econômicas", avalia Timerman. Nesta entrevista, ele analisa as causas do problema, dá exemplos de iniciativas que transformam a comunidade em aliada para salvar vidas e critica duramente a falta de conhecimento dos médicos. E explica como pretende formar especialistas em emergência, assim que a nova faculdade começar a funcionar, em janeiro de 2008.
No Brasil, nossa emergência está em situação de emergência. Aqui não se dá a devida importância a esse atendimento. São serviços tratados com descaso e relegados a segundo plano. A maioria dos profissionais está ali para fazer bico assim que termina a faculdade. Às vezes os médicos dão um plantão por longas horas e em seguida vão para outro serviço sem condições físicas. Muitos nem são emergencistas. E é aí que mora o grande perigo porque muitas doenças acabam sendo mal tratadas.
São pessoas que trabalham em áreas críticas, como a terapia intensiva, o pós-operatório e as emergências no serviço pré-hospitalar. O que assusta no Brasil é as pessoas não perceberem a gravidade de ter profissionais sem conhecimento trabalhando nessas áreas.
A emergência é uma área complexa, que exige treinamento e forma de raciocínio muito rápido. A maioria não sabe fazer isso. Perdem-se vidas e há muitos riscos. Mas há outros dados que ilustram o impacto dessa atitude. Por exemplo, de 10% a 12% das pessoas atendidas nos nossos pronto-socorros deixam os serviços sem ter sido diagnosticadas e, portanto, sem tratamento. Algumas horas depois, infartam ou morrem fora do hospital. Esses pacientes foram buscar auxílio e não foram diagnosticados. O mesmo acontece com outras patologias, como o acidente vascular cerebral (conhecido como derrame). Muitas vezes, o paciente recebe alta antes que o AVC se manifeste. Por que? Porque não foi feita uma boa avaliação clínica. Aí tem alta e acaba ficando com alguma seqüela
Elas podem morrer ou ficar seqüeladas. Imagine isso do ponto de vista da economia da saúde. O indivíduo que não recebeu tratamento adequado para o infarto, por exemplo, será uma pessoa que vai passar a vida com insuficiência cardíaca (incapacidade de o coração bombear sangue para o resto do corpo), com uma qualidade de vida ruim e dependente até morrer dali a alguns anos. Estamos criando legiões de pessoas seqüeladas no País, e isso poderia ser evitado.
Segundo o Datasus, há 50 mil mortes por infarto no Brasil. Boa parte deve ser pelos problemas sobre os quais falei acima. São poucos os hospitais em condições de fazer a semana toda angioplastia ou stent (espécie de mola colocada para abrir a artéria entupida) e nem todos têm a medicação para dissolver o coágulo. E a questão crucial hoje é que mesmo em hospitais que possuem as medicações para dissolver o coágulo pode haver demora ou mesmo uma falha no tratamento do infarto.
Fizemos um trabalho de conscientização da população médica em várias cidades do Norte e Nordeste. Nosso objetivo era ensinar os médicos que havia uma medicação que dissolve o coágulo ou então que se deve mandar o paciente ao cateterismo. Depois de um tempo, vimos que muitos dos medicamentos comprados pelo governo perderam a validade sem ter sido usados. Fiquei perplexo e enviei uma equipe para saber o que aconteceu. Eles descobriram que os médicos tinham medo de usar a medicação. Agora enviamos equipes para dar plantão com os outros médicos, ensinando como se faz o atendimento. É a única maneira que encontramos para fazer com que isso mude.
A resposta é a cara do Brasil. As pessoas tinham medo. A equipe que foi verificar a situação ouviu, de um especialista, algo simples e claro. Ele disse: "Olha, doutor, aqui na nossa região é o seguinte – se eu der essa medicação e o paciente morrer porque esse remédio fez com que ele tivesse um sangramento maior, a família é capaz de me processar porque ele teve o sangramento. Mas se ele morrer de infarto, ele morreu de infarto, não de hemorragia." Você tem idéia do absurdo que é isso? A gente sabe que essa medicação tem uma série de cuidados, mas aprendendo a usá-la, os riscos são controlados. Só que esses médicos não conseguem ver o risco-benefício.
O que mais leva à morte súbita é a doença coronariana. Na hora em que o músculo cardíaco está sofrendo por falta de irrigação, está vulnerável. Pode ter uma arritmia súbita, que é a chamada fibrilação ventricular. Tratase de um caos elétrico de origem súbita e, muitas vezes, quando tratado de uma maneira rápida, é reversível. Quanto mais rápido você tratar, mais rápida é a reversibilidade do problema. É questão de tempo. Se eu tiver uma parada cardíaca aqui, no meu primeiro minuto, de zero a dez minutos, eu perco 10% de chance de sobrevida. Em dez minutos eu estou morto. Agora, se fizer o tratamento certo em até cinco minutos, além de ter possibilidade maior de sobrevivência, as chances são menores de ter uma seqüela. O atendimento se faz com o uso dos desfribiladores (aparelhos que regulam as descargas elétricas no músculo cardíaco). Há trabalhos mostrando que a implantação desses equipamentos em cassinos de Las Vegas, por exemplo, e sua utilização até três minutos depois da fibrilação fazem com que 70% das pessoas sobrevivam.
Estamos fazendo. O InCor fez o treinamento da Varig, que chegou a ter 11 casos de parada cardíaca e 45% de salvamento. Na Câmara Federal, em Brasília, onde também demos treinamento, tivemos 80% de sobrevivência das seis paradas cardíacas lá registradas desde então. Também estamos treinando os seguranças do metrô de São Paulo. Não temos números, porque ainda estamos terminando o treinamento, mas temos três casos reportados, com salvamento em dois casos.
Cerca de 84% dos ataques cardíacos acontecem em casa. E 16% em locais públicos. Nos Estados Unidos, 50% a 52% desses eventos são acompanhados por crianças ou adolescentes. Por isso, lá foi feito um trabalho de ensino de atendimento de emergência nas escolas para crianças e adolescentes.
Ensinam a criança a chamar o atendimento de emergência. E a fazer a massagem cardíaca ou respiração boca a boca até chegar o socorro.
Demos cursos esporádicos em escolas, mas não temos nenhum programa.
Dará a atenção devida. No currículo, introduzimos a prática médica no primeiro semestre, que contém a matéria "Aprendendo a Ser Médico". Para isso, foi feito um investimento de R$ 3 milhões na compra de equipamentos para montar um laboratório de simulação. Ela é muito importante e feita antes de o aluno colocar a mão no paciente. Dá a ele a chance de errar várias vezes enquanto está aprendendo, mas sem ferir ninguém. As escolas americanas e européias usam esse recurso.
Existe muita coisa para mudar. Por exemplo, você sabia que é uma regra internacional que ambulância não pode andar na contramão? Outro equívoco: não se pode transportar paciente que não esteja estabilizado. Primeiro você estabiliza, depois transporta. É mais uma convenção internacional. Você nunca transporta, entre hospitais, um paciente que não esteja estabilizado. É preciso ter a maior certeza de que ele vai chegar com segurança ao outro hospital. Trabalhei muito tempo em ambulância. Quando o doente tinha parada cardíaca, mandava parar o carro. Não se pode atender um paciente com parada cardíaca com o automóvel em movimento. Mas tenho esperança. No Brasil, esse atendimento começa a se organizar com o Samu (serviço de atendimento de emergência implantado pelo governo federal). O programa ainda tem que melhorar muito, mas já é um começo.
Vivemos um momento delicado na relação com os jovens da elite brasileira que pode pagar uma escola. Mas temos de trabalhar para recuperar os objetivos da medicina e do médico. Os jovens que aqui permanecerem terão disciplinas como desenvolvimento humano e social, estilo de vida, para que possamos preparar o comportamento deles diante de ricos ou pobres. Nossa ênfase será no profissional completo da saúde. Quero que meus alunos conheçam os recursos mais avançados da medicina e tenham uma visão clara da realidade brasileira e do seu papel como médicos nesse contexto.