De vez em quando, um jovem cientista vai contra a corrente e segue um caminho que pode até ser considerado meio bizarro por pesquisadores mais experientes. Graças a essa teimosia, a bióloga japonesa Haruko Obokata, 31 anos, e seus colegas anunciaram, na semana passada, uma descoberta que pode ser capaz de revolucionar tudo o que se sabia sobre meios para se obter células-tronco embrionárias, a principal esperança da medicina para regenerar tecidos e uma das maiores apostas para ajudar na cura de doenças. O time comandado por Haruko, todos do centro Riken de Biologia do Desenvolvimento, localizado em Kobe, no Japão, criou uma técnica que simplifica imensamente a obtenção de células pluripotentes induzidas (conhecidas pela sigla em inglês IPSs). Elas têm potencial semelhante ao das células-tronco embrionárias – extraídas de embriões e muito mais versáteis do que as células-tronco adultas, retiradas de fontes como o cordão umbilical. Ao contrário das adultas, que têm potencial menor de transformação em outras células, as embrionárias e as IPSs são capazes de se converter em quase todos os tecidos do corpo. Até hoje, o método mais eficiente para conseguir as tais IPSs era ativar três ou quatro genes em laboratório para levar uma célula já especializada – como a da pele, por exemplo – a regredir ao ponto de perder suas especificidades, processo que pode levar semanas.  

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SUCESSO
A bióloga Haruko marcou as novas células com uma substância fluorescente
e as injetou em um embrião de camundongo. A imagem indica que elas
se integraram às células do embrião, deixando-o todo verde

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A técnica de Haruko é simples. Seu grupo submergiu células do sangue de camundongos recém-nascidos em uma solução ácida (pH 5,5) por 25 minutos. O estresse causado a essas células provocou um conjunto de reações que apagou suas características e as conduziu a um estado de pluripotência extremamente parecido ao que se observa em células embrionárias e nas IPSs obtidas até agora. A etapa seguinte foi comprovar que essas células teriam mesmo a habilidade de se transformar em qualquer tecido do organismo. Com essa intenção, os pesquisadores marcaram-nas com uma substância fluorescente e as injetaram em um embrião de camundongo. As imagens – disponíveis nos artigos sobre a pesquisa, publicados na última edição da revista científica “Nature” – mostraram que elas se misturaram por inteiro às células de todo o embrião, formando o que os pesquisadores chamam de quimera. A fluorescência mostra isso.  

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EXPECTATIVA
A geneticista Lygia aguarda a reprodução dos resultados por
outros cientistas e a aplicação da técnica em células humanas

O método recebeu o nome de Stap (sigla em inglês para aquisição de pluripotência desencadeada por estímulo). Os dois artigos que o descrevem foram feitos em colaboração com a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e a Universidade Médica de Mulheres de Tóquio. Antes, foram submetidos a diversas publicações científicas que não o aceitaram. “Cheguei a pensar em desistir”, declarou Haruko.
O achado surpreendeu a comunidade científica. “Se esses resultados forem reproduzidos em outros laboratórios para que se comprove o avanço, poderão promover um grande salto na medicina regenerativa”, avalia a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE), em São Paulo. O neurocientista Stevens Rehen prepara-se para testar o método no Laboratório Nacional de Células-Tronco do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ali, Stevens está reprogramando células da urina em células pluripotentes e deve submeter o primeiro trabalho para publicação em cerca de três meses. “O momento é de muita excitação. Hoje cada kit para reprogramar células humanas custa em média R$ 14 mil e o sucesso é de 0,1%. Imagine a revolução que trará um método de baixíssimo custo e que consegue reprogramar até 30% das células, segundo os pesquisadores!”, diz o cientista.

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É grande a expectativa sobre a continuidade desses estudos. “Se funcionar no homem, esse método pode ser o divisor de águas que no futuro tornará acessível uma ampla variedade de terapias celulares, utilizando as células do próprio paciente”, disse o pesquisador Chris Mason, do University College London, da Inglaterra. No entanto, antes de testar o método em humanos, Haruko pretende aplicá-lo em camundongos adultos. Se não funcionar com eles, pode ser que não funcione em células adultas de humanos também. “O maior desafio para mim daqui para a frente será  aprofundar a investigação sobre os mecanismos ainda ocultos que permeiam o processo. Quero ter uma compreensão mais detalhada de como essas células diferenciadas podem se converter a um estado tão extraordinariamente pluripotente”, disse Haruko. Um dos pontos mais intrigantes é uma possível capacidade demonstrada por essas células de se transformarem em tecidos placentários. Nem as células embrionárias e tampouco as pluripotentes conseguiram isso até hoje.

Fotos: Marcelo Rudini/Folhapress; Haruko Obokata/Divulgação