Na manhã de quarta-feira 12, Josefa Silveira era só sorrisos. Saíra do escritório político do veterano vereador paulistano Wadih Mutran (PPB) crente de que o saco de farinha de que precisava para dar início à produção caseira de pastéis viria com a rapidez de sempre. Afinal, Mutran é conhecido em toda a Vila Maria, na zona norte da cidade, pela presteza quando o assunto é ajudar seus eleitores. Não muito longe dali, na parte mais periférica da Freguesia do Ó, onde predominam casebres construídos em terrenos à beira de uma avenida de fluxo intenso, numa empreitada quase suicida, um homem tão simples quanto Josefa estampava o mesmo semblante satisfeito, de quem acabara de ver um sonho realizado. Mateus Ferreira de Souza fechou seu armarinho correndo e apontou para o objeto do desejo. Um mero poste fora colocado, “graças ao vereador Viviani Ferraz”, bem defronte à sua casa, onde se embaralham fios precários. Josefa e Mateus compartilhavam a mesma alegria de quem se contenta com as migalhas que sobram de um poder público arrombado por uma corrupção sem precedentes. Mas divergiam categoricamente no ponto mais importante de todo esse enredo: a preferência política. “O Viviani é um homem bom; tem meu voto. Aqui só se vota nele”, dizia Mateus, sacando do bolso o santinho do vereador do PL, que comanda politicamente a região há pelo menos 12 anos. “Sou o vereador Mutran e não abro”, defendia Josefa, citando seu benfeitor. Os dois políticos, leais defensores do combalido Celso Pitta, têm em comum a prática do chamado coronelismo urbano iniciado na gestão Jânio Quadros e que despontou com força total no governo de Paulo Maluf. Vão além. Exatamente por causa disso, eles e seus colegas ignoram as denúncias de corrupção que insistem em rodeá-los e já comemoram a certeza da reeleição. Milhares de josefas e mateus vivem em feudos eleitorais distribuídos pelo prefeito aos vereadores em troca de um apoio irrestrito para a aprovação de projetos na Câmara Municipal. E são agraciados com favores dos mais variados por causa da “solidariedade” desses e de outros coronéis da periferia, que também estão com suas cadeiras reservadas no Legislativo.

Os governistas Toninho Paiva (PL), Edivaldo Estima (PPB) e Dito Salim (PPB), além de Viviani e Mutran, são os políticos que trabalham na contramão da história e contribuem para fortalecer a prática urbana de um clientelismo surgido no Nordeste, nos tempos do Império, segundo tese de Marco Antônio Carvalho Teixeira, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Mas há outras raposas que teriam se utilizado da artimanha política. Uma das cenas mais grotescas ocorridas ano passado na Câmara foi reflexo desse desmando. A vereadora Maria Helena (PL), irritada com a reconquista do “curral” Freguesia do Ó pelo colega Viviani, tirou da bolsa um revólver calibre 38 e, em plena sessão legislativa, bradou, como se estivesse no sertão: “Se ele tomar o que é meu, eu mato.” Hanna Garib, deputado cassado por atuar em esquemas de propina, também disputava a cobiçada Freguesia a ferro e fogo. Um de seus símbolos de generosidade era a distribuição de “carteirinhas” do PAS, que dariam um atendimento preferencial ao portador. “O pior de tudo é que o clientelismo se justifica porque o cidadão não vê o serviço público como um direito e busca com o vereador o que deveria obter na rede municipal”, sintetiza Teixeira.

Um exemplo típico é o chamativo escritório de Mutran na Vila Maria. Em uma das salinhas, ficam amontoadas dezenas de cadeiras de roda com o nome do vereador, à espera de um doente. No estacionamento, uma infinidade de ambulâncias, símbolo de Mutran. E para finalizar, sobre a mesa da assistente, páginas e páginas com os nomes, os favores e o crucial: se devolveu ou não a benfeitoria. Ronaldo Simião Souza, 28 anos, devolveu. Agradecido, cedeu o muro de sua borracharia para uma ostensiva publicidade do político, sem um pingo de remorso. Também pudera. Sua mãe tinha um quisto no seio e só conseguiu ser operada, depois de meses de espera em filas de hospitais públicos, quando Mutran interveio. A avó de Ronaldo, por sua vez, precisava de um aparelho auditivo. Não tinha dinheiro e foi enfrentar a fila para falar com Mutran, que chega a atender 50 pessoas num só dia. Saiu de lá com o aparelho na mão, sem despender um real sequer. Ele mesmo enfrentou problemas com os pneus de sua oficina deixados irregularmente sobre a calçada, para chamar a atenção de motoristas aflitos. Falou com o vereador e a liberação veio prontamente. “Voto nele de olho fechado. Aqui, o bairro é dele.”

Periferia – Apesar de até armas de fogo fazerem parte dessa estrutura arcaica, os protagonistas do retrocesso político paulistano negam veementemente conquistar eleitores por meio de favores prestados. “Isso aqui não é São Paulo. São Paulo é diferente da minha região pobre e humilde, que não tem asfalto nem shopping center”, justifica Dito Salim, que sairá candidato este ano. E não é à toa que se considera reeleito. A região que classifica como “sua”, Itaquera, zona leste, lhe proporciona o contato direto com uma população bem maior do que a da maioria das cidades brasileiras – cerca de 452 mil pessoas.