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Com cinco livros publicados, uma coluna numa revista mensal e quase dez anos de liberdade depois de 32 preso, Luiz Alberto Mendes é
um dos raríssimos casos de alguém que conseguiu sair de uma cadeia brasileira melhor do que entrou. Que tal ouvir o que ele tem a dizer?
 

Três cabeças precisaram ser arrancadas e virtualmente penduradas na praça pública do mundo para que a sociedade brasileira se lembrasse de seu meio milhão de presos. Normalmente, ela os ignora. Paga a conta, é verdade, mas se recusa a olhar para os calabouços medievais que constrói e mantém, vivendo a ilusão de que o problema está devidamente “isolado”. Como veio à tona a reboque das cabeças desencorpadas, dia sim, dia não, um preso é assassinado nas cadeias nacionais. Foram 197em 2013. É verdade que o Maranhão vem dando “notáveis mostras de eficiência” no trato com seus presos. Nada menos que 60 cadáveres da conta mencionada foram produzidos nas cadeias daquele Estado, cuja população carcerária é 30 vezes menor do que a do segundo colocado no ranking, São Paulo, que teve 20 presos assassinados no ano que acaba de morrer. Mas lagostas, uísques e Sarneys à parte, chega a soar engraçado, para quem consegue relevar a tragédia, ver os ares de surpresa e de certa estupefação de boa parte dos observadores que só se puseram a analisar e opinar sobre o sistema prisional depois de verem as cabeças sendo balançadas no YouTube, entre um episódio e outro de “Porta dos Fundos”.

Triste ainda ter que assistir às discussões datadas entre defensores dos direitos dos presos versus os que gritam pelos direitos do “cidadão de bem”, como se a ideia de interdependência entre tudo e todos fosse uma ficção e como se, admitindo-se a existência de dois grupos distintos, um não tivesse influência decisiva sobre o destino do outro. Não é preciso ser antropólogo ou filósofo. Se você já teve o cano de uma arma apontado por uma besta fera na sua direção, deve saber exatamente o que significa a noção de interdependência. Mas, para quem não estiver conseguindo entender ou formar opinião a respeito do que tem visto na mídia nas últimas semanas, há um fato alentador que merece ser analisado com atenção. O cidadão no retrato ao lado foi preso ainda menino por latrocínio e condenado a mais de 100 anos de detenção. Entrou na cadeia analfabeto e, como ele mesmo conta, animalizado e sem nenhum vínculo com nada. Entre outras “técnicas incríveis” de recuperação aplicadas por nosso sistema prisional, chegou a sofrer torturas por três meses seguidos e a ficar um ano trancado numa cela solitária. Até aí, como diria a polícia, “sem novidades”. Esta é a história da maioria dos criminosos brasileiros que não frequentaram o Congresso.

A novidade veio pela sua própria força de vontade e com o auxílio de alguns notáveis abnegados que fazem trabalhos voluntários nas cadeias, como Sophia Bisilliat e Fernando Bonassi. Luiz Alberto Mendes se alfabetizou, leu compulsivamente durante anos e anos, fez primeiro e segundo graus por correspondência, prestou vestibular, passou com louvor e foi um dos primeiros presos do Estado de São Paulo a cursar uma faculdade. Direito na PUC. Deu aulas na cadeia, começou a escrever ainda preso e publicou seu primeiro livro, “Memórias de um Sobrevivente”, pela editora Companhia das Letras, enquanto estava na cadeia. Nessa mesma época, começou a produzir aquela que deve ter sido a primeira e única coluna mensal escrita por um encarcerado num veículo de comunicação periódico. Luiz está solto há quase dez anos. Cumpriu praticamente 32, dois além do limite que a legislação determina no Brasil (por conta de uma fuga que empreendeu décadas atrás). Há algumas semanas lançou seu quinto livro, “Desconforto”, pela editora Reformatório, seu primeiro de poesias. Foi finalista do respeitado prêmio Jabuti e vive da literatura desde que viu a cara da rua novamente. Além dos livros, continua com sua coluna mensal na revista “Trip” e com seu blog no site da mesma publicação. Esteve algumas vezes dando entrevistas memoráveis no programa de Jô Soares, mas foi no “Provocações”, ancorado pelo ator e diretor Antônio Abujamra na TV Cultura, que deu provavelmente seu depoimento mais rico e instigante. Vale muito a pena ler seus livros e ver a mencionada entrevista, disponível no mesmo YouTube das cabeças arrancadas. O link é: https://goo.gl/lLWUjk. Quanto uma exceção rara como esta, alguém que segundo suas próprias palavras era um ladrão estúpido, violento, bestificado e inconsequente e conseguiu se transformar numa figura de verdade reintegrada ao convívio social, poderia nos ensinar? Não só sobre o que fazer com o depósito de carne prensada e necrosada em que se transformaram as cadeias brasileiras, mas sobre como podemos, a partir de soluções um pouco mais inteligentes e equilibradas, evitar que continuemos fritando na mesma chapa quente uma massa composta por cidadãos desgraçados que não têm nada (e que por isso mesmo nada têm a perder) e por outros que têm e, cada vez mais aterrorizados, vêm comprando câmeras, erguendo muros, fugindo para shoppings (já ameaçados pelos rolezinhos) e condomínios, blindando portas e carros e pagando milícias particulares formadas exatamente por aqueles da primeira turma. 

A coluna de Paulo Lima, fundador da editora Trip, é publicada quinzenalmente