O siciliano Tommaso Buscetta, filho de um vidraceiro de Palermo, se mostrou difícil de quebrar. Bem que tentou: sobreviveu aos riscos anormais da profissão de “soldado da máfia”; saiu ileso da primeira grande guerra de gangues de Palermo em 1962; foi gerente de uma das primeiras grandes operações mafiosas de tráfico de drogas no Brasil; passou por cadeias brasileiras, italianas e americanas; e transformou-se no primeiro mafioso a colaborar com a Justiça, passando à condição de inimigo número 1 da Cosa Nostra. Nem a ingestão de cicuta, numa tentativa de suicídio, conseguiu acabar com ele. Caçado em três continentes, pela polícia ou por seus ex-parceiros de crime, Tommaso deu seu último suspiro no domingo 2 na ala de oncologia do Sloan Kettering Memorial Hospital, em Nova York. Tinha 71 anos e só perdeu sua última batalha para o câncer com quem lutou três anos.

Don Masino dizia que o Brasil havia sido o lugar onde ele passara seus dias mais felizes. A vida nos trópicos lhe fazia bem: quando em São Paulo (que ele achava muito parecida com Gênova), frequentava o antigo restaurante Patachou. Certa noite de 1972, ele enviou uma garrafa de champanhe para a mesa onde estava a fina flor da Tropicália: Caetano Veloso e Gal Costa. Os baianos não sabiam que o fã italiano era uma espécie de Don Corleone local.

Tommaso também pegou um bronze na paradisíaca Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. Lá ele mantinha bem azeitada uma operação de contrabando de cocaína, usando o antigo aeroporto de terra batida à beira-mar e a distância de um tiro da casa do Capitão dos Portos. Ninguém, é claro, notava a frequência dos vôos noturnos na ilha. Seus escritórios locais eram o bar e restaurante Totinho e as corretas mesas do restaurante Siriúba. Nem todos os nativos, porém, tiveram encontros felizes e regados a champanhe. O dono da pousada Bordelão, por exemplo, se preparava para dar a volta ao mundo num veleiro que construía com as próprias mãos. Em 1972, ele foi encontrado morto debaixo desse barco. Esta seria a primeira vez que o nome Buscetta seria pronunciado incorreta e nervosamente pelos noticiários brasileiros.

A partir daí não demorou muito para que a Polícia Federal, comandada na época pelo então delegado Romeu Tuma, desmontasse os negócios tupiniquins de Don Masino. Ele foi preso e deportado para a Itália, onde começaria sua carreira mais fulgurante: a de testemunha-chave no processo movido pelo famoso juiz Giovanni Falcone contra a Cosa Nostra. O juiz, assassinado em 1994, costumava dizer que Tommaso fora seu maior trunfo na guerra contra a máfia. A delação quebraria de forma espetacular a chamada omertà – o código de silêncio. Buscetta, inclusive, foi o primeiro a denunciar o envolvimento do ex-primeiro-ministro, Giulio Andreotti, com a máfia. O caso deu em pizza e o mafioso disse antes de morrer que se arrependeu de sua confissão. “Levarei a certeza de que errei na previsão que fiz junto com o juiz Giovanni Falcone, a quem tiraram a vida. A máfia hoje desempenha um papel maior do que tinha no passado. Porque a máfia se tornou um fato político”, disse.

Nos Estados Unidos, ele ajudou a desbaratar uma rede de traficantes de cocaína e heroína que funcionava em pizzarias de Nova York – a “Conexão Pizza”. E assim passou a ser então o homem mais odiado pela máfia. Seus serviços às autoridades americanas lhe valeram a proteção do FBI. Mas o dedo-duro da “Mano Nera” nunca conseguiu retornar à Ilhabela, embora tivesse dois filhos nativos e fosse casado (em sistema de bigamia) com a cidadã brasileira Maria Cristina de Almeida Guimarães. Na verdade, gostava de casar-se: teve três esposas e sete herdeiros em três continentes. Na aposentadoria, contentou-se com uma casinha em Nova Jersey. Um final, convenha-se, melhor do que aquele do dono do hotel Bordelão e outros que Buscetta mandou matar.

“Levarei a certeza de que errei na previsão que fiz com o juiz Falcone. A máfia hoje desempenha um papel maior do que no passado”