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Confira a entrevista completa com o psiquiatra

O psiquiatra mineiro Júlio Licínio, 55 anos, deixou o Brasil há mais de três décadas para consolidar uma carreira internacional brilhante. Na Austrália, onde mora, chefia o programa de mente e cérebro do South Australian Health and Medical Research Institute e ensina na Universidade Flinders. De lá, Licínio lidera a criação de uma rede mundial de cientistas, universidades e governos destinada a deflagrar uma ofensiva às doenças psiquiátricas. A proposta desse movimento, lançado oficialmente no começo de janeiro pela revista científica “Molecular Psychiatry” (fundada pelo médico, assim como as publicações “The Pharmacogenomics Journal” e “Translational Psychiatry”), é aglutinar forças para acelerar as descobertas nesse campo. A iniciativa foi inspirada no esforço convocado pelo ex-presidente americano Richard Nixon na luta contra o câncer na década de 1970, uma campanha que revolucionou o conhecimento da doença e seu tratamento. “Houve uma evolução tremenda por causa dessa ação voltada ao câncer. No campo das doenças mentais, porém, pouca coisa mudou. Elas são tratadas como há 30 anos”, diz Licínio. “Essa realidade precisa mudar.” Nos Estados Unidos, onde atuou por 25 anos, o psiquiatra conduziu estudos nas universidades da Califórnia, Yale, Miami e no National Institutes of Health, instituição que concentra as maiores verbas de pesquisa do mundo. Também é professor da Universidade do Minho, em Portugal, e da Université Paris Descartes, na França. De passagem pelo País para rever familiares, ele visitou a redação de ISTOÉ e conceceu a seguinte entrevista: 

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ATRASO
Licínio diz que avanços demoram para chegar ao paciente 

ISTOÉ – De que modo uma guerra contra as doenças mentais pode melhorar o tratamento?
JÚLIO LICÍNIO – 
Estamos muito atrasados. No campo das doenças mentais, faz-se necessária uma iniciativa de grande impacto para concentrar esforços de pesquisa e otimizar as descobertas para caminhar mais rápido. Foi esse o resultado da Guerra ao Câncer lançada pelo ex-presidente Richard Nixon. Naquela época, em 1971, não havia o genoma e os bancos de dados e de tumores que temos hoje, mas a guerra ao câncer produziu uma mudança fabulosa no conhecimento da doença e no seu tratamento, a ponto de alguns tumores se tornarem curáveis. Também ocorreu algo semelhante com a Aids, que no começo era fatal e hoje é uma doença crônica bem controlada. Eu espero que a Guerra às Doenças Mentais ganhe a mesma força e mude o tratamento.

ISTOÉ – Qual é o impacto das enfermidades psiquiátricas?
JÚLIO LICÍNIO – 
Hoje elas representam 20% de todas as enfermidades – duas em cada dez pessoas no mundo têm algum problema psiquiátrico. Mas sua participação muitas vezes não atinge 5% do montante de recursos destinados pelos países às pesquisas médicas. Portanto, existe aí um divórcio entre o impacto social e os recursos destinados à pesquisa. Elas representam também a quarta causa de incapacidade para o indivíduo realizar as suas atividades diárias. Nos Estados Unidos, cerca de 11% da população com mais de 12 anos já toma remédios antidepressivos. O suicídio, geralmente é consequência da depressão: por ano, no mundo, 781.927 pessoas cometem suicídio, que é a 16ª causa de mortalidade global. Nos Estados Unidos e na Rússia, o suicídio é a décima causa de morte em pessoas com mais de 10 anos; na Coreia do Sul é a sétima. No Brasil, é a 25a

ISTOÉ – Como as doenças psiquiátricas afetam a economia?
JÚLIO LICÍNIO –
 Na Austrália, por exemplo, foi calculado que os gastos diretos ou indiretos relacionados com a doença mental consomem 12% do Produto Interno Bruto. Nos Estados Unidos, estima-se que só a depressão custa US$ 100 bilhões por ano. Na União Europeia, o gasto com doenças de cérebro (incluindo problemas psiquiátricos e acidente vascular cerebral) é de US$ 1 trilhão por ano. São valores muito altos que irão aumentar mais se as doenças mentais continuarem sendo negligenciadas no mundo. Pagaremos muito caro por isso se nada for feito.

ISTOÉ – Quais são as enfermidades mais comuns?
JÚLIO LICÍNIO – 
A depressão atinge, em média, 15% das mulheres e entre 5% a 8% dos homens. A esquizofrenia responde por 1% da população mundial e o transtorno bipolar representa 2% dos casos. As outras doenças mais frequentes são autismo, transtorno obsessivo compulsivo, distúrbios de alimentação (bulimia e anorexia) e de ansiedade.

ISTOÉ – Há excessos na indicação de antidepressivos nos Estados Unidos?
JÚLIO LICÍNIO – 
De modo geral, uns tomam remédio sem precisar, outros tomam remédio demais e muita gente nem sequer foi diagnosticada. Então, o que existe é gente que não está bem tratada psiquiatricamente. Apenas 30% dos pacientes apresentam remissão total das doenças. Outros 30% têm melhora parcial e 30% não respondem ao tratamento.

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"O estigma se mantém. Já viu algum executivo assumindo
que tem transtorno bipolar e precisa tomar Litium?"

ISTOÉ – E existe uma redução nos leitos hospitalares para esses pacientes?
JÚLIO LICÍNIO – 
Sim. Nos EUA, a realidade atual é que as escolas de medicina mantêm os seus departamentos acadêmicos de psiquiatria, mas muitos hospitais universitários de peso não têm mais enfermaria para esses pacientes. Onde não fechou, há pouquíssimos leitos disponíveis. Os hospitais querem que cada leito aberto renda o máximo possível e psiquiatria não dá dinheiro. Um paciente psiquiátrico na enfermaria será medicado até melhorar e, em geral, não precisará de nenhum procedimento caro como o cateterismo ou a ressonância magnética do coração, que propiciam mais lucro por hora de permanência do doente no hospital.

ISTOÉ – Pode dar um exemplo de universidade onde isso ocorreu?
JÚLIO LICÍNIO –
 A Universidade de Chicago, sempre cotada entre as dez primeiras do mundo, recentemente fechou a enfermaria de psiquiatria.

ISTOÉ – Quais são os principais alvos da guerra que se inicia?
JÚLIO LICÍNIO – 
Um dos mais importantes é reduzir o tempo que as descobertas científicas demoram para ser introduzidas na prática clínica. Um estudo muito bem-feito mostrou que as conclusões que levam a mudanças no modo de tratar uma doença demoram, em média, 17 anos a partir do momento em que foram publicadas em uma revista científica até se tornarem parte das prescrições feitas pelo médico. O estudo foi feito com descobertas publicadas no “New England Journal of Medicine”, o principal jornal médico do mundo de medicina em geral, e se refere à prática médica nos Estados Unidos. Imagine no Brasil.

ISTOÉ – Qual é a estratégia de ação da rede de pesquisadores?
JÚLIO LICÍNIO – 
Partimos do pressuposto de que é necessário haver uma ação ampla envolvendo pesquisa, ensino, tratamento e esforços para aumentar o aporte de recursos. Em termos de articulação, o plano é estabelecer parcerias entre os governos locais, a esfera federal, universidades e o sistema de saúde.

ISTOÉ – Essas medidas começam a ser colocadas em prática em algum lugar?
JÚLIO LICÍNIO – 
Na Austrália, por exemplo, onde as doenças mentais ocupam o primeiro lugar entre os males incapacitantes. Assim que eu chegar do Brasil irei falar com o ministro da Saúde para discutir o aumento de recursos em nível federal. Como são apenas seis Estados, algo que se inicia em um deles logo se alastra. Daí vamos expandir para os Estados Unidos e União Europeia. Diversas universidades, institutos e sociedades de psiquiatria, neurologia e neuropsicofarmacologia já aceitaram empreender esse esforço em rede.

ISTOÉ – O que a rede fará para diminuir o tempo de chegada dos avanços aos pacientes?
JÚLIO LICÍNIO – 
No Estado de South Australia, em Adelaide, decidimos envolver diretamente o pessoal de saúde pública com o nosso trabalho de pesquisa. Quanto mais próximos eles estiverem das redes clínicas, menos tempo essa transposição levará. Também é importantíssimo haver cursos para treinar as pessoas continuamente. Nos Estados Unidos isso já existe, mas de um modo que não é sempre muito sério. Lá se pode fazer um curso dentro de um cruzeiro e ir às aulas ou não, mas terá o certificado do mesmo jeito. Isso precisa ser mais sério.

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Em famílias com carga genética para a depressão,
se o bisavô teve depressão aos 40, o bisneto
poderá manifestar a doença aos 15 anos

ISTOÉ – E para aumentar a adesão ao tratamento?
JÚLIO LICÍNIO – 
É mais um desafio. Na Europa um grande estudo mostrou que 56% dos pacientes deixam de tomar remédio por conta própria depois de quatro meses de tratamento. É mais do que urgente informar a população sobre os benefícios da medicação quando ela é bem indicada e derrotar o preconceito nas suas mais diversas formas. Remédio de hipertensão ninguém para de tomar, mas as pessoas acham que devem parar com os remédios psiquiátricos porque não fica bem continuar tomando. Estamos também desenvolvendo um aplicativo de celular para que o médico possa acompanhar o paciente a distância.

ISTOÉ – Quem já se comprometeu com esse esforço todo?
JÚLIO LICÍNIO – 
Entre os que se dispuseram a assumir esse compromisso estão as universidades americanas de Harvard, Stanford e da Califórnia, o Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, seu correspondente nos Estados Unidos, o South Australian Health and Medical Researtch Institute, o King´s College de Londres, a Universidade de Dresden, na Alemanha, e a McGill, no Canadá.

ISTOÉ – Registra-se um aumento nas doenças psiquiátricas?
JÚLIO LICÍNIO – 
Isso é muito debatido. Alguns acham que o diagnóstico é mais frequente, outros que há mais casos. O psiquiatra americano Gerald Klerman, já falecido, provou há muitos anos que em famílias com carga genética para a depressão, por exemplo, a doença chega cada vez mais cedo. Se um homem teve depressão aos 40, o filho poderá manifestar sintomas aos 30 e o bisneto, com 15 anos.

ISTOÉ – Como será o tratamento em 20 anos?
JÚLIO LICÍNIO – 
Há muitos estudos para avaliar por que algumas pessoas respondem à medicação e outras não. Em duas décadas, todo mundo poderá fazer testes que indicarão a qual remédio a pessoa responderá melhor. Alguns exames já existem, mas ainda são caros.

ISTOÉ – Persiste o preconceito?
JÚLIO LICÍNIO – 
O estigma se mantém. Você já viu algum alto executivo paulistano assumindo que tem transtorno bipolar e toma Litium? Ninguém quer se revelar como paciente psiquiátrico ou dizer que tem um parente com o problema. É como se a doença psiquiátrica indicasse uma fragilidade daquela família. Isso precisa acabar. Muitos dos avanços no câncer e doenças como Aids estão relacionados com a ação das ONGs e de pacientes. Em relação às doenças psiquiátricas, no entanto, há muitos pacientes que não conseguem se organizar por motivos óbvios para brigar por seus direitos. Se eles não podem fazer isso, alguém precisa enfrentar essa batalha.