Em agosto passado, quando o então presidente russo Bóris Yeltsin o nomeou primeiro-ministro, Vladimir Vladimirovich Putin era um ilustre desconhecido. Sabia-se apenas que aquele sisudo burocrata de 47 anos tinha sido tenente-coronel do antigo KGB (serviço secreto da URSS), espião soviético na Alemanha Oriental, vice-prefeito de São Petersburgo na gestão do liberal Anatoli Sobchak no início dos anos 90 e, nos últimos tempos, chefiava o Serviço Federal de Segurança (SFS, um dos sucessores do KGB). Nada fazia supor que ele seria diferente de seus antecessores recentes no cargo, que mal conseguiam esquentar a cadeira. Assim, quando o combalido e impopular Yeltsin deixou claro que o queria como sucessor, os analistas previram o fim de sua carreira. Mas a Rússia está longe de ser um país normal. No domingo 26, quase três meses depois de se tornar presidente interino em função da renúncia de Yeltsin e sem se dar ao trabalho de fazer campanha, Putin sagrou-se presidente da Rússia com 52,6% dos votos, contra 29,3% do neocomunista Gennadi Zyuganov e 5,8% do liberal Grigori Yavlinsky.

Tomando uma distância estratégica de seu desastrado padrinho, o ex-espião conseguiu a façanha de conquistar corações e mentes dos russos mostrando pulso forte e prometendo tirar o país do caos econômico e da corrupção institucionalizada através da implantação de uma “ditadura da lei”. Até agora, a expressão mais forte dessa disposição foi o impiedoso esmagamento da guerrilha separatista na República da Chechênia, iniciativa fortemente apoiada pela população. Por isso, para a maioria dos analistas ocidentais, o novo presidente tem uma insofismável tentação totalitária. “Céticos crêem que ele irá restaurar a ordem, mas sem a lei”, diz a revista Newsweek. De fato, Putin nunca escondeu sua admiração pelo Estado forte. “A Rússia se desenvolveu como Estado supercentralizado. Isso faz parte do código genético do país, da tradição e da mentalidade do povo”, disse.

Casado com Ludmila, duas filhas, o novo presidente russo é judoca, não fuma e é pouco chegado ao copo, ao contrário do antecessor beberrão. É um enigma que vem conseguindo fazer com que as pessoas o vejam como ele quer ser visto. “Todo mundo espera tudo de Putin”, disse o escritor Sergei Malakovets. “Os camponeses esperam que ele compre tratores e combustíveis baratos. Os trabalhadores da indústria bélica crêem que ele comprará novos submarinos. Os comunistas se orgulham do fato de ele ter sido do KGB. E os democratas o vêem como um liberal disfarçado.” O cineasta Igor Shadkhan, produtor de documentários, diz que uma das chaves para se entender Putin é vê-lo como integrante de uma nova geração de burocratas soviéticos. “Ele foi formado nos anos 70, na era Brejnev, quando a URSS vivia um processo de estagnação interna, mas também começava a se abrir para o mundo.” O psicólogo Leonid Gozman, da União das Forças de Direita, diz que ninguém da geração de Putin acreditava na ideologia comunista. “Eles fizeram carreira durante os últimos anos do comunismo e os anos da glasnost. Esta geração não pensa em trazer de volta a ditadura e é pró-Ocidente”, garante. Opinião endossada por Lenina Pomeranz, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP e uma das maiores estudiosas da Rússia no Brasil: “Putin faz parte de um grupo considerado de elite do KGB, um grupo menos preocupado com perseguição a dissidentes do que com a reviravolta da situação econômica do país”, disse ela a ISTOÉ. “Muitos analistas o consideram um Pinochet russo, na medida em que pretende fazer um governo forte para atrair capital estrangeiro e reforçar a economia de mercado. Mas ainda é muito cedo para se tirar conclusões. É preciso esperar pelas suas medidas”, pondera Lenina.

Entourage mafiosa – Uma das grandes incógnitas é saber se Putin vai manter a entourage mafiosa que cercava o ex-presidente Yeltsin no Kremlin, composta por uma oligarquia de empresários que enriqueceram com as privatizações. Seu primeiro ato como presidente interino, aliás, foi justamente conceder imunidade a Yeltsin e seus familiares contra acusações de corrupção. O mais conhecido membro dessa claque palaciana é Bóris Berezovsky, que ajudou Yeltsin a se reeleger em 1996 e hoje controla uma rede de tevê, empresas de petróleo e alumínio. Publicamente, o novo presidente diz querer cortar as asas dessa oligarquia e está se cercando de colaboradores do antigo KGB. Mas muitos amigos de Berezovsky ainda têm voz ativa no Kremlin, como o ministro das Finanças, Mikhail Kasyanov, tido como favorito para ser o novo premiê. “A máfia não é homogênea. Existem grupos econômicos e financeiros que têm interesses conflitantes. Putin pode romper com um determinado grupo e se associar a outro. Mas ele não poderá dispensar o apoio de grandes grupos econômicos”, avalia a professora Lenina Pomeranz.

Dados oficiais dão conta de que as diversas máfias controlam quase 70% dos negócios realizados na Rússia e o mercado paralelo movimenta algo em torno de 25% do PIB. Nos anos do pós-comunismo, essa oligarquia mafiosa foi responsável pela transformação da antiga segunda potência do globo num país dominado pelo crime organizado e pelo empobrecimento de sua população. De fato, a Rússia, que possui um arsenal nuclear capaz de destruir o mundo várias vezes, tem um terço de seus habitantes vivendo abaixo do nível de pobreza. Nada menos que 60% do PIB está nas mãos de apenas 20% dos russos. “Somos um país rico de gente pobre”, reconhece Putin.