O efeito dominó Pinochet já começou. Na segunda-feira 27, a Justiça da Espanha abriu uma investigação para apurar as denúncias feitas pela Prêmio Nobel da Paz (1992) e líder indígena, Rigoberta Manchú, de genocídio, assassinato, tortura e terrorismo contra oito generais da Guatemala. Entre os acusados estão três ex-ditadores: o general Efraín Ríos Montt (1982-1983), o general Óscar Humberto Mejía Víctores (1983-1986) e o general Fernando Romeo Lucas García (1978-1982). O general Lucas García casou-se com uma venezuelana e mudou-se para a Venezuela. O general Víctores aposentou-se na Guatemala, onde tem seus negócios. Já o general da reserva Ríos Montt é o maior alvo, porque hoje ocupa o cargo de presidente do Congresso da Guatemala e é líder da Frente Guatemalteca Republicana (FRG).

Ríos Montt, 73 anos, católico, declarou que não está nem um pouco preocupado com a possibilidade de ser preso no exterior. “O único que temo é Deus. Não vou cancelar minhas viagens deste ano à França e aos Estados Unidos”, garantiu Ríos Montt. O presidente do Congresso guatemalteco, assim como acontece com Pinochet, goza de impunidade parlamentar e por isso deu de ombros à Justiça da Espanha. “Essas acusações não me afetam em nada. Vou continuar trabalhando normalmente”, anunciou o ex-ditador.

O responsável pelo caso é o juiz Guillermo Ruiz Polanco, da Audiência Nacional da Espanha – a máxima instância judiciária do país –, que deverá usar dos mesmos procedimentos de seu colega Baltazar Garzón, que apura as violações de direitos humanos cometidas nas ditaduras do Chile (1973-1990) e da Argentina (1976-1983). Foram justamente as ações de Garzón que levaram o ex-ditador chileno a passar um ano e cinco meses detido na Inglaterra.

A reação do vice-presidente da República, Juan Francisco Reyes López, não foi tão tranquila. “Como advogado sei que quem faz uma acusação deve ter as provas. Não fazê-lo implica consequências e responsabilidades legais”, numa alusão direta à líder indígena. Rigoberta Manchú baseou suas denúncias em três casos de violações de direitos humanos, entre elas a que ocorreu em 1980, quando 37 pessoas morreram num ataque dos militares à embaixada espanhola. Entre as vítimas estava o pai da líder indígena.
Se os casos chilenos e argentinos são de arrepiar a espinha, pouco se fala sobre as atrocidades cometidas na Guatemala, onde em 36 anos de regime autoritário mais de 200 mil pessoas morreram ou desapareceram, segundo informa a Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH). A comissão, fundada em 1994 para levantar os genocídios, torturas e desaparecimentos, concluiu no ano passado que o Estado é o responsável por 93% dos crimes da guerra civil da Guatemala.

Desde a independência proclamada em 1821, a elite formada pelos descendentes de espanhóis se opõe à ascensão social da maioria indígena, herdeira da civilização maia. Em 1954, um golpe militar patrocinado pela CIA derrubou o presidente Jacobo Árbenz, que expropriara as propriedades da United Fruit americana. A partir daí, com pequenos intervalos, os militares controlaram a vida política do país. Para agravar a situação, os sucessivos governos investiram muito pouco em programas sociais, mesmo nos 20 anos de grande crescimento econômico, entre 1960 e 1980. Assim, o abismo social aumentou, ao mesmo tempo que recrudescia a violência política. Resultado: grupos de resistência pipocaram por todo o país. Em 1982, os quatro principais grupos guerrilheiros se uniram na chamada União Revolucionária Nacional Guatemalteca (UNRG) numa guerra civil que só terminou há quatro anos. A violência foi mais intensa entre 1978 e 1984, quando as atrocidades dos militares contra civis chegaram ao ápice, culminando em massacres e atos de horror contra milhares de pessoas, vitimando não apenas os indígenas, mas estudantes e líderes de movimentos de oposição. No início dos anos 80, centenas de corpos foram enterrados em valas comuns.

Apesar da UNRG ter se tornado um partido político e haver eleições e instituições democráticas, a Guatemala vive hoje uma frágil democracia. Há quem veja obstáculos intransponíveis para que sejam levados aos bancos dos réus os responsáveis pelos 626 massacres ocorridos na Guatemala nos anos de chumbo. A deputada Nineth Montenegro, da Frente Democrática para a Nova Guatemala, é fundadora de uma das primeiras comissões de direitos humanos, a Fundação Grupo de Apoio Mútuo (GAM), e está descrente quanto ao desenrolar da investigação da Justiça espanhola. Nineth tem a trajetória de muitos ativistas de direitos humanos que ingressaram na luta depois de terem perdido seus familiares. Seu marido, Edgar Fernando Garcia, está desaparecido desde 1984. No seu segundo mandato como deputada, ela parece conhecer bem a casa onde trabalha, que tem como presidente um ex-ditador. “Aqui não ocorre como no processo chileno, em que se abriram as portas para o debate na sociedade sobre os anos da ditadura. Há pouca cultura política”, disse a deputada a ISTOÉ.