Descartado da historiografia oficial, houve em São Paulo um clandestino ciclo da prata que teve como epicentro um povoado chamado Araçariguama, próximo à cidade de Santana do Parnaíba. Ele serviu para financiar o ciclo do ouro do século XVII, esse sim incluído garbosa e oficialmente em nossa história – e cantado até em verso e prosa. Essa negociata da prata, em sua movimentação social e econômica, envolveu indistintamente colonos portugueses e índios tupis, aventureiros espanhóis e índios guaranis, todos unidos contra os interesses religiosos dos jesuítas. Agora a surpresa: quem a capitaneava era justamente um padre. Chamava-se Guilherme Pompeu de Almeida e sua trajetória sai definitivamente das sombras com o livro O banqueiro do sertão – volume I: Mulheres no caminho da prata, volume II: Padre Guilherme Pompeu de Almeida (Editora Mameluco, 1.072 págs., R$ 170). Assina a obra o jornalista, sociólogo e cientista político Jorge Caldeira, também autor da biografia Mauá, o empresário do império. Caldeira recupera a vida desse personagem a partir de pesquisas em arquivos de São Paulo, Rio de Janeiro, Ouro Preto, Belo Horizonte, Salvador, Lisboa, Sucre, Buenos Aires, Madri e Sevilha.

Filho de um industrial do ramo do ferro, que enriqueceu produzindo manufaturados numa época dominada por simples artesãos, padre Guilherme nasceu em 1656 e estudou com os jesuítas em Salvador. Poderia ter uma brilhante carreira eclesiástica e ocupar um cobiçadíssimo posto na Companhia de Jesus. Como a fé é forte mas a carne é fraca, o padre não resistiu aos encantos de uma índia e de sua relação amorosa nasceu-lhe a filha Inês. O autor anota que a singularidade de seu personagem está em aliar a sofisticação intelectual a uma mentalidade tipicamente tupiniquim. O livro descreve em detalhes a formação do cenário ocupado pelo padre que chegou a construir um luxuoso castelo com capela e espaçoso hotel. Era aí que ele recebia os negociantes, ou contrabandistas, em sua maioria parentes de sangue ou de afinidade, única garantia possível para não ser trapaceado nos negócios. Ao contrário do que se ensina, a São Paulo dos séculos XVI e XVII era muito mais ligada à economia espanhola (leia-se, prata peruana) do que Salvador, capital da colônia, que gravitava em torno do ciclo da cana-de-açúcar.

Segundo o autor, quando o império espanhol resolveu se apossar de toda a prata extraída de Potosi, situada no Vice-Reino do Peru (hoje Bolívia), para subsidiar o comércio dos jesuítas, os paraguaios vieram a São Paulo para fazer contrabando – uma povoação paraguaia inteira, Vila Rica do Espírito Santo, situada nas proximidades de Corumbá, mudou-se para as terras paulistanas que se ligavam economicamente a Buenos Aires, Assunção e Potosi. Foi nessas idas e vindas que os comerciantes que faziam essa rota descobriram ouro em Minas Gerais. E quem os financiou? O padre Guilherme. Depois de trocar ferro por prata e prata por ouro, ele multiplicou a sua fortuna trazendo gado de Curitiba para vender aos mineradores. Ao morrer em 1713, o ciclo do ouro já havia acabado. Mas a sua fortuna pessoal abarrotou os cofres dos jesuítas.