Há dois meses morando no Rio de Janeiro, o dramaturgo Gerald Thomas, 45 anos, está redescobrindo aos poucos o que é ser carioca. A volta para sua cidade natal se deve à estréia da peça Ventriloquist, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, e ao convite para dirigir o teatro Sesc-Copacabana, onde deve montar dois espetáculos por ano que, na sua visão, devem extrapolar o teatro. “A idéia é falar de cultura em geral, música, promover debates. O Rio tem de voltar a ser um fetiche cultural do Brasil, uma musa”, anima-se ele, que há 20 anos dirige o Teatro La MaMa, em Nova York. Radical como ele só, ao se mudar para o Rio, Thomas aproveita para atirar pedras na capital paulista, cidade em que organizou sua trupe teatral, a Cia. de Ópera Seca, no final dos anos 80. “Falta identidade cultural a São Paulo. Por isso, adere com muita facilidade a esses cultos e séquitos religiosos, duplas caipira, rodeios. A cultura de lixo é gerada em São Paulo”, ataca.
Em rara fase de lua-de-mel com a crítica, que cobriu Ventriloquist de elogios, Gerald Thomas está com novo trabalho, Coro e camarim – uma tragédia rave, que interpreta de forma cáustica fenômenos como a busca pela fama, Internet e psicanálise. Estreou na segunda-feira 20, no Festival de Teatro de Curitiba, causando rebuliço. Os jornais noticiaram que os atores discutiram em pleno palco os bastidores da encenação, dando a entender que o diretor não tinha recebido seu cachê em dia, justificativa para ele ter concluído o texto somente às vésperas da estréia. A organização do festival não gostou nem um pouco. Chegou a chamá-lo de mentiroso. Mas como seu nome também pode ser polêmica e incompreensão, é provável que tudo faça parte de uma encenação que, outra vez, ninguém entendeu.

ISTOÉ – Depois de ser tachado de incompreensível e chato, sua última peça só recebeu elogios. Você mudou ou mudou o público?
Gerald Thomas – A peça está recebendo odes, poemas. Eu estou no meio do caldeirão, não sei o que aconteceu. Talvez tenha mudado o paladar para o cozido… Mas outros espetáculos também emocionaram muita gente. O Brasil só vive para o agora, então tá, eu sou um sucesso agora.
ISTOÉ – Um personagem da peça se define como um impostor. E você, é um impostor?
Thomas – Sim, dentro de um sistema de impostores não-assumidos, a única dignidade é me assumir um impostor. O lixo cultural que está aí é uma impostura, então sou um impostor. Se eles não são, eu sou. No dia em que Ratinho, Xuxa, essa vaca, Tiazinha, Feiticeira, toda esta merda caipira, se assumirem impostores, eu deixo de ser.
ISTOÉ – Muita gente reclama de não entender suas peças. Você se entende?
Thomas – Arte não tem nada a ver com entender ou não. Nunca passou por isso. Alguém entende a Sétima sinfonia de Beethoven? Você compreende um quadro de Paul Klee, ou sente? Que bobagem! Essa palavra não entra no meu vocabulário.
ISTOÉ – Você já leu Freud, Jung e Lacan. Fez ou faz análise?
Thomas – Nunca fiz. Fui duas vezes conversar com psicanalistas. Adoro ler Lacan, Freud, a contracultura da psicanálise da década de 60. Resolvo minhas neuroses no palco. Em vez de pagar uma consulta, recebo 200 pessoas para assistir às minhas neuroses e todo mundo parece se emocionar e rir bastante com elas. Por que vou falar para uma única pessoa? Não acredito muito em análise. Começou como uma coisa brilhante e terminou como uma venda. É outro vício, só que não em pó. É uma promessa utópica tão sem premissas quanto qualquer droga, qualquer realização material, espiritual, qualquer Marcelo Rossi. Utopia é algo inalcançável, e o artista se diferencia por vivê-la, ao perceber a impossibilidade de alcançá-la. Não acredito em terapia, em drogas…
ISTOÉ – Você nunca curtiu drogas?
Thomas – Claro que já. Não tenho nada contra. Mas nunca tive problema com elas. Tem de ser muito fraco de espírito para ficar dependente de uma substância química. A droga também é uma promessa muito grande e vira seu melhor amigo e seu pior inimigo. Acho uma bobagem… Dá para fazer como coisa de fim de semana, como tomar uma taça de vinho no jantar. Faça o que quiser fazer, mas daí a ficar entortado no fim da noite… Acho o ser humano uma coisa maior, tem muito território para ser explorado aqui dentro, não dá para queimar neurônios. De vez em quando você pisa na jaca, é maravilhoso, mas viver dentro da jaca é emburrecedor. Como fui criado num terreno muito drogado, tomei nojo disso muito cedo. Fui motorista de ambulância, carregava os junkies londrinos de volta para os centros de recuperação. Para mim, as drogas não têm nenhum glamour.
ISTOÉ – Você leu Kafka aos 13 anos, depois os clássicos ingleses. Era um adolescente nerd?
Thomas – De nerd eu não tinha nada. Trepava pra caramba. Comia deus e o diabo na terra do sol. Os nerds amam, mas não trepam. Por que você acha que a empresa do Bill Gates se chama Microsoft? A mulher dele deve ter dado esse nome à empresa na noite de núpcias. Me prostituí na adolescência. Aos 16 anos, eu tinha de comer qualquer coisa para sobreviver. Não via como homem e mulher, eram velhos para mim. Até hoje recebo propostas: vem morar comigo e eu te sustento. Tem isso na alta sociedade.
ISTOÉ – Como foram seus encontros com o dramaturgo irlandês Samuel Beckett?
Thomas – Encontrei com ele algumas vezes, de 1984 a 1989. Tinha uma reverência tão grande por ele que eu congelava, no início. Muitas vezes ficávamos calados, lendo originais dele. Eu ia a Paris e ligava para a editora dele avisando que havia chegado, porque não tinha o telefone dele e esperava ele me ligar. Estou contando mais sobre essa convivência no livro que estou escrevendo. Vai se chamar Boca a boca, ou Boquete – Gerald Thomas conta tudo. Deve sair até setembro. Já tem muita gente me ligando tensa com as revelações, mas não vou adiantar nada. Só no livro.
ISTOÉ – Samplers, clonagem, Internet são temas abordados em seus trabalhos recentes, de forma crítica. A sua visão da ciência é sempre pessimista?
Thomas – Vivemos um tempo muito ácido. Uma desilusão muito grande, mascarada por uma falsa ilusão chamada Internet. Tenho medo da ciência, na medida em que daqui a pouco, com o DNA e a clonagem, haverá muito mais racismo. Um chefe de uma empresa poderá saber que tipo de gente se presta melhor a um serviço, porque a raça dele é melhor para aquilo. Deus me livre! Você tirar o fator do acaso do ser humano, o enigma do que é vida e morte e o desenrolar das coisas, ter tudo programado na vida do homem, acaba tudo. E isso é inevitavelmente fascinante para os cientistas, descobrir o que somos. É uma loucura que Deus tenha criado esse sistema.