O governador Anthony Garotinho (PDT) caiu nos braços da banda podre da polícia do Rio de Janeiro. Sua pretensão de disputar a Presidência da República em 2002 estava sustentada num plano ousado de combate à violência no Estado. Mudar um quadro de décadas de desmandos, violência, corrupção e falta de profissionalismo poderia realmente ser uma bandeira de grande apelo eleitoral em todo o País. Poderia. Ainda mais que, ao contrário de outras teses baseadas apenas no aumento da repressão e numa polícia violenta, o projeto Garotinho era politicamente correto, pois previa grandes investimentos sociais como forma de matar a violência na base. Com a demissão do coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania, Luís Eduardo Soares, mentor intelectual de idéias inovadoras na área da segurança pública, Garotinho ficou sem pai nem mãe. Além da péssima repercussão entre entidades de defesa dos direitos humanos, o governador abriu mais uma frente de batalha com o PT, que desta vez pode terminar em divórcio. Até os petistas moderados estão criticando a opção do governador pela chamada banda podre e defendendo a entrega dos cargos que ocupam no governo. “Eu lamento, mas ninguém é insubstituível”, desdenhou Garotinho.
Uma crise política era o que faltava para completar o inferno astral do governador, que, além da polícia, vem se desgastando com a poluição que domina as lagoas e praias do Rio. Ao demitir o sociólogo Luís Eduardo Soares pela televisão, na segunda-feira 21, Garotinho sabia do risco de virar refém dos policiais acusados de envolvimento com o crime organizado. Uma gravação de conversas do traficante Fernandinho Beira-Mar com policiais mostra que a podridão é muito maior do que se imagina. Existe uma rede de policiais especializados em achacar criminosos. “Se mexerem com a minha família, eu vou para a imprensa. (…) Tenho certeza de que uns 50 caem, perdem a carteira”, ameaça o traficante, que diz ter perdido apartamentos, automóveis e milhares de dólares em troca da liberdade (leia mais no quadro à pág. 37).

A cúpula podre – Além de colaborar com idéias, Luís Eduardo também agiu. Ele entregou ao Ministério Público um dossiê de dez páginas, em que acusa a cúpula policial, incluindo o chefe da Polícia Civil, Rafik Louzada, de envolvimento em crimes como extorsão e receptação de carros roubados. O esquema renderia R$ 500 mil mensais só em propinas do jogo do bicho, além de contribuições mais modestas como as de R$ 21,5 mil de hotéis do Centro, frequentado por prostitutas menores de 18 anos. O suculento caldo de denúncias foi engrossado com os 1.988 casos recolhidos pela ouvidora da polícia Julita Lemgruber (que pediu demissão em solidariedade), apontando a participação de policiais também em homicídios e sequestros.
Especialista em violência urbana formado pela PUC/RJ, Luís Eduardo é autor de oito livros sobre o tema, incluindo o que escreveu em parceria com Garotinho e serviu de peça de publicidade da campanha eleitoral de 1998. Era uma espécie de manual com respostas prontas para as principais preocupações dos cariocas a respeito do assunto. Vencida a eleição com a promessa de eliminar em definitivo o bangue-bangue das ruas, Garotinho guindou Luís Eduardo a uma posição de prestígio no governo. Em abril do ano passado, o intelectual entrou em conflito com o então secretário de Segurança, general José Siqueira, discordando da nomeação de oficiais da Polícia Militar para o comando do serviço de contra-informação. Garotinho demitiu Siqueira. Há um mês, defendeu o cineasta João Moreira Salles, que pagou R$ 1,2 mil ao traficante Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, para que ele escrevesse uma autobiografia. A posição de Luís Eduardo contrariou o coronel Josias Quintal, sucessor de Siqueira. Desta vez, Garotinho ficou em cima do muro e tentou conciliar as opiniões conflitantes.
Irritado com o auxiliar, que denunciou a banda podre sem pedir autorização, Garotinho, além da demissão via satélite, gravou e depois tornou pública a conversa por telefone em que comunicou o bilhete azul. “É para mostrar que ele tem duas caras. Para o governador fala uma coisa, à opinião pública diz outra”, tentou justificar Garotinho, que mais tarde se declarou arrependido do grampo. Ameaçado de morte, Luís Eduardo embarcou na quarta-feira 22 para os Estados Unidos.

Enfrentamento – Não é só no Rio que a situação parece incontrolável. “Nossas polícias são ingovernáveis. Formam um poder à parte que se recusa a obedecer ao governo, seja ele qual for”, afirma o secretário de Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol. Bem que o ex-senador tentou ensinar bons modos. Baixou portaria obrigando o policial a advertir verbalmente qualquer suspeito antes de disparar a arma. Como não deu resultado, em janeiro deste ano trocou o comando da polícia. Logo depois, o delegado Raul Bosio prendeu um dos assaltantes mais procurados no Estado, Cláudio Ribeiro, o Papagaio, e dedicou o sucesso da operação ao chefe que fora afastado por Bisol, Luiz Fernando Tubino. Bisol confessa sentir-se numa posição ambivalente – “o secretário ora manda, ora não manda” – e diz que as tentativas de mudar a polícia esbarram em “princípios que não foram estabelecidos racionalmente”. Um exemplo de irracionalidade é o regulamento da Polícia Militar de São Paulo, elaborado em 1943, que pune apenas com advertência verbal o uso de violência descabida por parte do PM, ao mesmo tempo em que prevê prisão administrativa de cinco a 15 dias em caso de “falta de zelo com animais no quartel”. A deputada Zulaiê Cobra Ribeiro (PSDB-SP), autora de um projeto que prevê mudanças na área da segurança pública, ataca: “Muita gente frouxa tem exercido o comando da segurança pública em vários Estados. É melhor sair morto do que desmoralizado.”
Quem passou pelo trauma de enfrentar as bandas podres tirou conclusões contundentes. É o caso do deputado estadual Hélio Luz (PT-RJ), 53 anos, delegado aposentado que chefiou a polícia carioca na gestão do governador Marcello Alencar. “As pessoas se escandalizam quando percebem que a polícia é sádica, mas o que seria da elite do País sem uma polícia corrupta e violenta? As corporações existem para manter privilégios.” Ele desdenha da comissão formada por Garotinho para apurar as denúncias: “Vão jogar na fogueira meia dúzia de agentes sob os holofotes e daqui a um mês ninguém fala mais no assunto.” Luz afirma que, para extirpar a banda podre da polícia, é necessário investigar também o Ministério Público e os poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. “No Brasil, existe uma federação de bandas podres”, ironiza. A mudança poderia começar com a implantação de uma polícia bem equipada que pague salários dignos e seja, antes de tudo, honesta e eficiente. “A violência excessiva é indício de incompetência. Polícia boa é a que chega antes e previne o crime”, define o ouvidor da polícia paulista, o sociólogo Benedito Mariano, outro intelectual envolvido até a raiz do cabelo na reforma da segurança pública. O mundo das idéias se confronta com o cotidiano no qual prevalece o poder de fuzis e metralhadoras. Tudo indica que, para vencer a guerra, belas palavras e boas intenções serão insuficientes.