Os tucanos não tiveram muito tempo para comemorar a desgraça de Paulo Maluf (PPB), atingido em cheio pelas denúncias de Nicéa Pitta. Com a constatação de que nem assim a candidatura a prefeito do vice-governador Geraldo Alckmin (PSDB) conseguiu dar sinais de vida, os tucanos passaram a ficar assombrados com o fantasma de mais uma derrota na capital paulista, onde sempre amargaram a posição de lanterninhas, ficando atrás de petistas e malufistas. Mas outro pesadelo está deixando os tucanos sem sono, inclusive o presidente Fernando Henrique Cardoso: o de que o PFL, que também sempre foi raquítico em São Paulo, possa finalmente fincar seus pés na maior cidade do País, ganhando mais força ainda para a disputa presidencial de 2002. Diante da perspectiva do naufrágio total, os tucanos passaram a encarar a candidatura da ex-prefeita Luiza Erundina (PSB) como uma verdadeira tábua de salvação.

O crescimento de Erundina e a estagnação de Geraldo Alckmin começaram a provocar alvoroço no PSDB. O governador Mário Covas já avisou aos mais próximos que nutre uma simpatia muito especial pela ex-petista e sinalizou que dessa vez não irá permitir que Erundina sofra os mesmos problemas que enfrentou na campanha para o Senado, quando foi boicotada pelo seu partido, o PT, e derrotada por Romeu Tuma (PFL). Soou como uma declaração de apoio. Ao dizer o que disse, Covas foi direto ao ponto: a deputada do PSB é a alternativa a Alckmin e, se for preciso buscar recursos para a campanha, o governador estará disposto a ir buscá-los. Para os tucanos, a solução Erundina também é vista como a melhor forma de tentar derrotar a candidata do PT, Marta Suplicy, que está em primeiro lugar nas pesquisas, tendo a ex-companheira de partido em segundo lugar.

A manobra de Covas, porém, não foi bem recebida por alguns tucanos, como o deputado Walter Feldman, um dos colaboradores mais íntimos do governador. Feldman, coordenador da campanha de Alckmin, não tem afinidade com Erundina. A antipatia entre os dois vem de longe. Quando Erundina era prefeita, Feldman foi um dos seus mais aguerridos opositores na Câmara Municipal. O governador, no entanto, aposta que, com o correr da campanha, as resistências à deputada serão menores. Por trás da costura de Covas, existe algo mais do que simpatia. O governador, apesar do desgaste de sua gestão, tem planos para 2002 e, se eleger Erundina, contará com o importante apoio e os votos da prefeita de São Paulo. Caso não seja Covas o candidato do PSDB à sucessão de FHC, a aliança poderá trazer benefícios diretos aos tucanos, pois tiraria Erundina dos braços de Ciro Gomes (PPS). Uma leitura que conta com a aprovação do próprio FHC. Seria uma maneira de barrar qualquer possibilidade de crescimento do PFL de ACM em São Paulo, o que poderia se viabilizar com uma vitória de Romeu Tuma na capital. A interlocutores, o presidente já disse que São Paulo poderá ser o centro de um novo alinhamento político, que começou a ser esboçado com o apoio do PPS a Erundina. O deputado federal Emerson Kapaz (PPS) decidiu renunciar à sua candidatura para cair nos braços de Erundina, de quem deverá ser companheiro de chapa. Erundina vai tentar ainda seduzir o PDT e o PL, já que com o PSB terá dois minguados minutos na propaganda eleitoral gratuita.

Um dos principais articuladores da formação de uma frente de centro-esquerda em São Paulo, o presidente nacional do PPS, senador Roberto Freire, pretende apelar mais uma vez a Covas para que os tucanos embarquem na frente e adverte que os setores conservadores paulistas que não foram atingidos pelo efeito Nicéa vão tentar desvincular sua imagem de Maluf. “A formação de uma frente de centro-esquerda é muito importante para derrotar a direita. Há uma máquina de fazer pittas em São Paulo e ela precisa ser desmontada. O problema é que forças conservadoras como a do PFL estão tentando se desvencilhar do malufismo, quando na verdade elas tiveram uma relação promíscua com Maluf”, observou Freire.

Filho ataca – A repentina pneumonia de Nicéa, as dificuldades para a aprovação do pedido de impeachment do prefeito na Câmara Municipal e a aparente tranquilidade de Celso Pitta – que viajou inabalável de jatinho para Brasília – sinalizavam que a indefectível pizza requentada estaria prestes a ser servida. A calmaria no furacão Nicéa provocada pela doença da ex-primeira-dama, encarada pelos aliados do prefeito como um recuo, e as articulações dos governistas para arrastar o cadáver de Pitta até as próximas eleições foram atropeladas por um outro escândalo. O prefeito levou mais um tiro caseiro. Seu filho, Victor Camargo Pitta do Nascimento, foi ao Ministério Público na terça-feira 21 e confirmou os depoimentos da mãe. Pior: revelou o que seria uma versão paulistana da Operação Uruguai, protagonizada por Pitta e o empresário e tesoureiro de honra do PPB, Jorge Yunes. O rapaz afirmou que o “empréstimo” de R$ 800 mil não passava de fachada para justificar a renda do prefeito (com os bens bloqueados desde 1998 por causa do escândalo dos precatórios) perante a opinião pública. No dia seguinte ao depoimento, o MP pediu a abertura de inquérito policial para apurar a participação de Pitta no esquema Yunes e na compra de vereadores. Pela primeira vez, desde o escândalo da máfia dos fiscais, o prefeito será investigado formalmente por corrupção.

Com o mesmo tiro, Victor acertou de raspão sua mãe, que, agora, também passa a ser alvo de investigações. No depoimento de 17 páginas, ele contou que Nicéa nunca prestou consultoria de arte a Yunes, como foi alardeado pela então primeira-dama para justificar o recebimento de R$ 150 mil. Não bastasse o novo terremoto, endossou a afirmação de Nicéa sobre a realização de uma reunião entre Pitta e vereadores, em maio de 1998, no apartamento da família, nos Jardins. Com um agravante: revelou que seu pai lhe havia dito que pagara, sim, aos parlamentares paulistanos para se livrar de uma CPI. Uma das empregadas do casal, Maria Helena, teria até servido cafezinho aos convidados no fatídico encontro.
A devassa na vida de Pitta feita pelo próprio filho não parou por aí. A briga entre o prefeito e seu padrinho político, Paulo Maluf, foi desmentida. Pitta teria até dado palpites na campanha de Maluf para governador e este, depois dos debates, teria ligado para o afilhado para aconselhar-se. Para comprovar a farsa, Victor disse que o Gol que usa até hoje para sua segurança pessoal é cedido pelo partido de Maluf, o PPB. Outras sujeiras foram ventiladas, como a participação de Flávio Maluf no esquema de cobrança do estacionamento do Anhembi e a doação de mais dinheiro a Victor por parte do pianista Pau Brasil, João Carlos Martins. Além dos R$ 5 mil já confirmados, outros R$ 8 mil teriam sido liberados pelo investidor.

Enquanto o reino ruía, Pitta parecia indiferente ao caos. Na quarta-feira, foi a Brasília prestar depoimento na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Ao contrário dos comuns mortais, viajou num confortável jatinho. Tudo dentro da lei, diga-se de passagem. Antes da gestão Maluf, o prefeito e servidores municipais usufruíam igualmente de um contrato com a Varig. A companhia aérea fornecia passagens por um preço determinado após licitação, mas Maluf não queria viajar num avião de carreira. Por isso, fez outra concorrência quando assumiu a prefeitura. Pelo contrato ainda em vigor, a TAM, vencedora, coloca à disposição do prefeito um jatinho. Apesar de legal, a prática esbarra na moralidade pública. Em 1999, Pitta gastou R$ 139.600 com a mordomia. Só este ano, R$ 72 mil já estão empenhados, ou seja, o salário de 529 trabalhadores que recebem mensalmente o mínimo de R$ 136.

Eu sou o próximo da lista.” O presidente do Sindicato dos Ambulantes Independentes, Afonso José da Silva, vive fugindo da morte há um ano. Ele testemunhou contra a máfia dos fiscais, apontando esquemas de corrupção na administração pública de São Paulo que envolvia fiscais e vereadores. Suas revelações trouxeram à tona a velha discussão sobre a criação de projetos voltados para proteger testemunhas. Logo em seguida, o governo criou o Programa Federal de Proteção a Testemunhas, e São Paulo implantou o seu, o Provita. Com o assassinato do ambulante Gilberto Monteiro da Silva, dia 16, que também depôs sobre o esquema, a discussão acerca da eficiência desses programas voltou a ser questionada.
Antes do Provita já existia em São Paulo, desde 1995, a Casa da Testemunha, com capacidade para abrigar 20 pessoas. O espaço apertado mais parece uma cadeia. A rotina é dura. A maioria dos que recorrem a ela é delatora de justiceiros, traficantes e homicidas e, a partir de 1999, testemunha da máfia dos fiscais. Passam meses trancafiados até serem acolhidos por parente ou amigo em outra cidade ou Estado. “As pessoas são encaminhadas para lá sem ter noção do que é aquilo e sem receber informações mínimas sobre o que vai acontecer na vida delas”, conta um policial. “Oferecemos curta proteção. Não é hospedaria nem hotel cinco estrelas. O que podemos fazer é isso. Não tenho como dar escoltas 24 horas por dia”, admite a delegada Elisabete Sato, responsável pela Delegacia de Proteção a Testemunhas.

As escoltas e o colete à prova de balas só existem para momentos especiais. “Para me proteger, fiz crer na imprensa que a polícia estava comigo 24 horas. Só que quando os depoimentos terminavam eles iam embora e levavam o colete junto”, conta Afonso. Por conta própria, ele anda com três seguranças particulares e com colete à prova de balas. O equívoco do ambulante é também o de muitos outros. “Acham que não vão sair da rotina, mas não é o que acontece”, esclarece Fabiano Marques de Paula, membro do Provita, que abriga 210 pessoas. O governo dá a eles uma ajuda de custo de R$ 600, recebem nova identidade e recolocação no mercado de trabalho.

O preço é alto para quem ousa denunciar crimes ou esquemas de corrupção. Que o diga a ambulante Ana Maria Gaski, que também denunciou o ex-deputado Hanna Garib. Quatro dias antes de Gilberto ser assassinado, ela recebeu nove telefonemas. Vozes gargalhavam e sugeriam para que ela “se cobrisse” e “se cuidasse”. Na quarta-feira 22, a polícia prendeu dois homens que teriam ganho R$ 500 cada um para matar Gilberto e desvinculou precocemente a morte do ambulante da máfia dos fiscais e dos políticos com ela envolvidos.

Eleger-se prefeito de São Paulo, a maior cidade do País, pode não ser motivo para muita comemoração. Há uma verdadeira bomba-relógio instalada na contabilidade da prefeitura. Se ela for detonada, a capital paulista mergulhará num profundo caos administrativo e, de quebra, seus estilhaços provocarão a falência do Banco do Brasil. O engenho, apesar de poderoso, não é difícil de ser desmontado. Mas depende de um acordo político no Senado, onde cada um dos senadores paulistas segura uma bandeira eleitoral diferente para as eleições de outubro.

A armadilha financeira paulistana tem origem no malfadado esquema dos precatórios – aquele dos títulos estaduais e municipais emitidos para o pagamento de dívidas reconhecidas pela Justiça. Em São Paulo, a prefeitura emitiu nada menos que R$ 6 bilhões em papéis desse tipo para, em princípio, quitar as tais dívidas. Mas a CPI dos Precatórios, que funcionou em 1997, provou que vários milhões de reais foram desviados com corrupção e fraudes contábeis durante o reinado malufista.

Hoje, o valor desses papéis é de R$ 7 bilhões. Tudo empurrado para debaixo do tapete do Banco do Brasil, que foi obrigado a assumir o negócio num acordo entre o governo federal e o PPB do ex-prefeito Paulo Maluf. Há um ano o prefeito Celso Pitta não devolve um tostão sequer do refinanciamento que recebeu do BB por esses títulos. Acumulou R$ 400 milhões em atrasos. Pela lei, está inadimplente e o banco estaria obrigado a lançar em seu balanço toda a dívida como prejuízo. Ao dar essa notícia, a diretoria teria de informar aos acionistas do BB – e o maior deles é o Tesouro Nacional – sua total falência, pois não teria caixa para tapar esse buraco. O tamanho da encrenca forçou o Banco Central a fazer vista grossa para a inadimplência paulistana e a liberalidade contábil do BB.

Mas o problema continua lá até que o Senado decida se vai desarmar a bomba ou deixá-la explodir. “Nós não podemos fazer nada enquanto o Senado não se pronunciar sobre o refinanciamento desses papéis”, resigna-se o diretor-financeiro do BB, Vicente Diniz. Pagar essa dívida em dez anos, como hoje exige a lei, representaria para a Prefeitura de São Paulo comprometer 31% de sua receita líquida. A cidade simplesmente teria que parar. Celso Pitta quer 30 anos, e voltou a dizer isso na quarta-feira 22, em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Ouviu uma resposta enigmática do relator do caso, senador Romero Jucá (PSDB-RR): “Meu relatório será técnico. O que tiver que ser rolado em 30 anos será. E o que tiver que ser rolado em dez anos, também”. Enquanto isso… tique-taque, tique-taque, tique-taque.
 

O outsider vai à luta

Há dois meses, o professor titular da Universidade de Harvard (EUA) Roberto Mangabeira Unger vem peregrinando pelas ruas de São Paulo tentando explicar seu projeto para a cidade. Persistente, Mangabeira avisa que vai disputar a convenção do PPS e argumenta que não foi seu partido que tomou a decisão de apoiar a candidatura de Luiza Erundina (PSB), mas um “grupelho”, liderado pelo deputado federal Emerson Kapaz, que anunciou a retirada de sua pré-candidatura. “Não aceito que o PPS seja usado como massa de manobra de políticos”, protestou. Com seu forte sotaque americano, Mangabeira reconhece que é um outsider na política, mas garante que não tem percebido nenhum preconceito por parte dos paulistanos.

ISTOÉ – O deputado federal Emerson Kapaz retirou sua candidatura para apoiar Luiza Erundina. Como o sr. encara essa decisão do PPS?
Roberto Mangabeira Unger – Não foi uma decisão do PPS, mas de um grupo, liderado por um político que foi do PSDB e que saiu de lá porque não conseguiu ser candidato. O preço para sua entrada no PPS foi a autorização para ser candidato. Como Kapaz não tem nada a dizer, sua candidatura ficou inviável. Para sair dessa encalacrada, ele decidiu retirar sua candidatura e cometeu o segundo erro, que foi aderir à Erundina em troca de nada, motivado pelo pânico. A decisão do PPS vai ser na convenção.

ISTOÉ – Mas o objetivo não foi formar uma aliança de centro-esquerda?
Mangabeira – Essa é uma das desculpas esfarrapadas oferecidas para explicar essa atitude. A população não se comove por adesões de um grupelho de políticos a outro. Outra desculpa que deram foi que, com essa adesão a Erundina, sinalizariam uma aliança de centro-esquerda para a sucessão presidencial, mesmo carecendo de um conteúdo.

ISTOÉ – O crescimento da candidatura de Erundina, em função das denúncias de Nicéa Pitta, não fortalece a idéia da formação dessa frente?
Mangabeira – Uma parte do eleitorado refluiu para Erundina. Ela é vista como uma pessoa decente, que fez uma administração mais voltada para a população mais pobre. Quanto à candidatura de Marta Suplicy, ela tem apoio amplo, porém fofo, uma vez que faltam alternativas.

ISTOÉ – Qual é o sentido de sua candidatura? Por que o sr., que morava até há pouco tempo nos EUA, resolveu se candidatar a prefeito de São Paulo?
Mangabeira – Eu reconheço que sou um outsider. Mas tenho um projeto concreto para a cidade e nas minhas andanças, conversando com as pessoas, não tenho sentido nenhum preconceito, nem com relação ao meu sotaque. Eu vou persistir, tentando acender uma centelha na opinião pública. Quero demonstrar que é possível o cidadão resistir.