"Nunca imaginei que Angola fosse um saco de feijão nas mãos de um miúdo.” A frase dita por uma velha senhora transtornada pela derrocada de seu mundo colonialista poderia resumir o clima do belo livro O esplendor de Portugal (Rocco, 384 págs., R$ 34), de António Lobo Antunes. Resumiria quase tudo, mas ficaria aquém da profundidade temática proposta por ele. É que a obra do escritor português merece ser saboreada página por página, apesar de provavelmente desagradar a quem prefere ver o mundo pelas cores maniqueístas da ideologia. Com sua pontuação dramática e estrutura entrecortada, Antunes não se preocupa em ser politicamente correto nem defende os que lutam por sua própria terra, independentemente de serem eles de esquerda, de direita ou apenas de passagem pela história. Limita-se a escancarar o espanto daqueles que vivem a violência e os horrores da guerra e são as eternas vítimas.

São estes horrores de uma guerra civil de muitas facções o motor da história de uma família de origem portuguesa – branca, portanto – que vê não só sua fazenda destruída como sua precária dignidade pequeno-burguesa arrastada pela lama. Os últimos rebentos da velha matriarca Isilda são um mestiço gerado por seu marido alcoólatra e comprado à mãe por alguns tostões para abafar o escândalo; um menino com sérios problemas mentais que fazem dele um pequeno monstro em potencial; e uma filha mais afeita aos amoricos que à vida regrada. Em meio ao tumultuado mundo que desaba, a moral escorre pelos algodoais, como todo o resto.

Durante a fuga para lugar nenhum, Isilda e as duas negras trombam com os miúdos (garotos) que, saco de feijão ou mera miséria em punho, traduzem da melhor maneira o surrealismo da desesperança da terra. E é entre delírios aos quais se recolhe como último refúgio que Isilda se lembra de frases nunca relevadas, do pai que explicava que o que haviam ido procurar na África “não era dinheiro nem poder, mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de fato ainda que o tivéssemos não tínhamos por não sermos mais que tolerados, aceitos com desprezo em Portugal”. As ilusões dos imigrantes, tão rudemente arrancadas dos peitos vazados por balas que não se avisam cubanas ou francesas ou inglesas ou de quem quer que sejam. O sotaque do tiro, sabe-se, é totalmente indiferente ao morto.