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John le Carré passou 50 anos negando ser o agente do título de “O Espião que Saiu do Frio”. Tinha raiva da imprensa, que ajudou o romance a se tornar best-seller numa questão de meses (o ano era 1963 e os livros da moda não se alastravam com a velocidade de hoje), propagando a “fantasia” de que a saga de Alec Leamas era uma forma de denúncia das verdadeiras e corrompidas entranhas do Serviço Secreto internacional. Le Carré, nascido David John Moore Cornwell, de fato era um oficial da Inteligência Militar do Serviço Secreto Britânico disfarçado de diplomata principiante na embaixada de Bonn, na Alemanha, quando publicou o romance que projetou no mundo o espírito soturno e desesperançoso da Guerra Fria. E não declarou a profissão verdadeira ao lançar a novela – o que, claro, deu ares de descoberta à informação quando ela veio à tona. “Tive raiva porque percebi que dali em diante eu sempre seria rotulado como o espião que virou escritor e não como um autor”, escreve ele em um novo prefácio redigido para a edição comemorativa de meio século da narrativa, que sai no Brasil pela Editora Record.

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Percepção errada. Passados 50 anos do livro, outros 23 romances, oito livros filmados e o nono a caminho (“O Homem Mais Procurado”, programado para estrear em 2014, com Philip Seymour Hoffman no papel do protagonista), Le Carré é sim reconhecido como um autor de histórias de espionagem, o maior deles. Mas se não há nenhum fato real relatado em “O Espião”, como o autor reafirma até hoje, a ambientação é fartamente alimentada pela experiência de uma década de Le Carré na inteligência britânica em território alemão. “A Berlim em que Leamas ganhou vida era um paradigma de loucura humana e um paradoxo histórico. Assisti ao progresso do Muro do arame farpado aos blocos de concreto; vi as muralhas da Guerra Fria se erguendo das cinzas ainda quentes da guerra aberta”, testemunha ele na abertura da nova edição. Um único ponto derruba a tese da denúncia embutida: o fato de o livro ter sido submetido, antes da publicação, ao Serviço Secreto Britânico. E liberado.

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“Muito antes de entrar para o mundo do Serviço Secreto eu já possuía um instinto para a ficção que me tornava um duvidoso coletor de fatos”, continua o escritor em seu prefácio. “Nunca fui um grande cérebro da espionagem. Nem um minicérebro da espionagem.” Em vez disso, se tornou o criador de uma família de gênios da investigação que humanizaram a figura impávida e intocável do agente secreto (os ninjas medievais já alimentavam o mito) com personagens cercados de crises de consciência, de sentimentos dúbios e bebida nem sempre de primeira – um contraponto à figura eternamente bem servida de James Bond, que se tornou fenômeno no gênero na mesma época, embalado pelos ternos bem cortados em Savile Row, rua de Londres.

Um homem com ares de militar, meia-idade, derrotado, com uma capa de chuva manchada pedindo o máximo de scotch que um punhado de moedas estrangeiras colocadas num balcão de bar de aeroporto poderia pagar. Essa visão fez nascer Alec Leamas, o anti-herói que Le Carré, passou a vida negando ser seu alter ego e interpretado dois anos depois de sua criação por Richard Burton no cinema.

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“Hoje, com dentes melhores, mais cabelos e um terno mais interessante, um homem como esse (o chefe de Leamas) pode ser visto explicando a guerra ilegal do Iraque ou justificando técnicas medievais de tortura como meio preferencial de interrogatório no século XXI”, observa o autor, adiantando um dos temas do livro que lança agora com a edição comemorativa de sua obra-prima. “Uma Verdade Delicada”, que o jornal londrino “Times” classificou como exemplar do que há de mais engenhoso na obra recente de Le Carré, tem cerca de 350 páginas e conta em toada cinematográfica a história de Christopher Probyn, funcionário público britânico de meia-idade enviado para uma missão secreta a Gibraltar em nome da coroa britânica, numa operação antiterror com desfecho bastante violento. O pano de fundo? A Guerra do Iraque, de quem Le Carré foi um dos grandes críticos, como é hoje da prisão do ex-funcionário da CIA Edward Snowden, que, segundo ele, deveria ser condecorado. “O que eu aprendi ao longo dos últimos 50 anos?”, pergunta dos altos de seus 82 anos. “Parando para pensar, não muito. Apenas que a moral do mundo do Serviço Secreto é muito parecida com a nossa.”

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