A fênix do Arizona, o senador John McCain, candidato à indicação do Partido Republicano às eleições presidenciais, finalmente foi ao chão em chamas. Desta vez em definitivo, sem que sua mágica de ressuscitar a partir das cinzas volte a funcionar. Na chamada “Superterça-feira”, no último dia 7, quando 13 Estados americanos votaram nos pré-candidatos de partidos, o governador do Texas, George W. Bush, obteve vitórias na maioria dos pleitos, inclusive nos três mais importantes: Califórnia, Nova York e Ohio. Para ser o indicado do partido na convenção são necessários 1.034 delegados. Destes, Bush já amealhou 681, o suficiente para acabar de vez com as esperanças de renascimento de McCain. Do lado do Partido Democrata, o vice-presidente Al Gore cumpriu o previsto e bateu seu oponente, o ex-senador Bill Bradley, folgadamente em todas as primárias realizadas. O democrata já havia assegurado 1.421 dos 2.170 delegados exigidos por seu partido para a indicação. Assim, começava a se definir o cenário para as eleições majoritárias de novembro. A incendiária, inesperada e empolgante campanha do senador McCain foi apagada pelos bombeiros frios e calculistas do establishment partidário, com o auxílio da direita religiosa, que voltou a mostrar sua força.
 

Foi uma campanha surpreendente e recordista. Nos últimos 20 anos, desde que o fenômeno Ronald Reagan tomou os Estados Unidos de assalto, não se via tamanha empolgação em eleições primárias. O número de votantes ultrapassou todas as marcas anteriores, com cerca de 15% a mais de eleitores correndo às urnas numa luta para definir a feição do país nos primeiros anos do novo milênio. Para isso não foram poupadas fortunas, num reflexo da exuberância econômica americana. Nunca se gastou tanto em eleições. Os republicanos desembolsaram combinadamente mais de US$ 100 milhões. Os democratas foram mais modestos, mas ainda assim ultrapassaram patamares anteriores jogando cerca de US$ 50 milhões nas primárias. Todo essa dinheirama comprou, pelo menos, inovações de marketing político que devem moldar os passos dos candidatos do futuro.
John McCain, o herói da guerra do Vietnã e candidato rebelde republicano, conseguiu a proeza de mostrar que George W. Bush não era tão imbatível quanto se dizia nos bastidores de Washington. Demonstrou também, para a decepção própria e da maioria dos americanos, que a direita religiosa, com sua agenda social conservadora, não está morta. Nas semanas que antecederam a Superterça, uma guerra santa foi travada na mídia e em comícios numa tentativa de enterrar definitivamente o espectro dessa importante ala republicana. Mas foi ela que no final acabou dando a George W. Bush os preciosos votos no chamado cinturão bíblico dos Estados Unidos, região que compreende vários Estados do Sul e Oeste, e ainda garantiu a Califórnia, o maior e mais importante Estado eleitoral da nação.
 

Foi esta guerra santa que definiu o quadro republicano. No início de campanha, quando ainda se imaginava que Bush navegaria tranquilo pelos mares das primárias, seus estrategistas políticos procuraram vender a idéia de que o texano era um moderado, dono de uma plataforma que buscava o centro e não obedecia às intransigências da direita religiosa, que fora responsabilizada pelas derrotas recentes do partido. Criou-se até mesmo o slogan “conservador com compaixão” para definir o modus operandi de Bush. Tinham também as bênçãos do establishment republicano e um cofre com US$ 70 milhões. Esperavam com isso cortejar os votos de um eleitorado equilibrado, avesso a radicalismos e, ao mesmo tempo, cansado dos escândalos de Bill Clinton. Não contavam que o senador John McCain fosse entrar nesta equação com sua atrativa proposta reformista e anti-status quo.

Flertando com a direita – O pânico tomou conta da campanha de Bush. Ninguém esperava que o exército brancaleônico de McCain, com um cofre minguado, fosse capaz de tamanha ousadia. Nas primárias seguintes, na ultraconservadora Carolina do Sul, foram despidas as luvas de pelica para que melhor se pudessem manobrar os baldes de lama jogados contra o senador. Bush também despiu seus trajes moderados e centristas para vestir o capuz da direita religiosa. Um capuz, no caso, que se assemelhava muito com aquele dos guarda-roupas da Ku Klux Klan. O texano abriu seu jogo no Estado com um comício na famigerada Universidade Bob Jones. Trata-se de um bastião anti-semita, antinegro, antigay e anticatólico (a escola considera o catolicismo um culto e proibia até a semana passada o namoro entre estudantes de raças diferentes). Através de comerciais de rádio e televisão, mala direta e trabalho nos bancos de telefones, os militantes da direita religiosa conseguiram levar para as urnas um contingente de seguidores que parecia adormecido nos últimos tempos. Bush ganhou a Carolina do Sul – ainda que McCain tenha demonstrado vigor junto ao eleitorado independente e com democratas que se empolgaram com sua mensagem.
 

A estratégia desesperada do governador texano deu-lhe novo fôlego, mas poderá custar muito caro em novembro próximo. McCain demonstrou isso com uma vitória sensacional em Michigan, três dias depois, onde o establishment do partido havia trabalhado dura e longamente na campanha de Bush. Os católicos e moderados, além dos independentes e democratas do Estado mostraram que não tem estômago para um candidato refém da direita intransigente. E talvez tenha sido esta mensagem que, paradoxalmente, acabou fazendo com que John McCain errasse nos cálculos e perdesse na terça-feira 7 a chance de receber os preciosos delegados para sua indicação na convenção republicana. Num discurso corajoso, emocionado e surpreendente, McCain denunciou em Virginia Beach as manobras de radicais que há muito sequestraram a plataforma dos partidos – ele citou num mesmo fôlego à esquerda o reverendo Al Sharpton, de Nova York, e Louis Farrakhan, apoiadores democratas, e os reverendos Pat Robertson e Jerry Falwell, fazedores de reis entre os republicanos. Era o princípio do fim. O gigante adormecido da direita religiosa despertou e ganhou uma vitalidade que não se via desde os tempos da chamada “revolução de Newt Gingrich”, quando os republicanos tomaram de assalto o Congresso americano em 1994.
George W. Bush ficou indelevelmente marcado por suas companhias. Aplica-se o chavão: “Diz-me com quem andas…, etc.” Al Gore, revitalizado pela luta que foi obrigado a travar contra o rebarbativo Bill Bradley, já centrou fogo contra o republicano e tem procurado demonstrar que o texano não passa de um Newt Gingrich redivivo. “As consequências podem ser muitas. Bush está lutando para reganhar credenciais centristas. Mas o apoio que conseguiu entre os conservadores religiosos pode se mostrar novamente muito útil em novembro”, diz Marin Fitzgerald, consultor político republicano independente. “Afinal, estes mesmos conservadores religiosos foram os que deram a vitória aos republicanos capitaneados por Gingrich em 1994”, lembra Fitzgerald.

Pacto com o diabo – “Aqueles eram outros tempos”. disse George Stephanopoulos a ISTOÉ na semana passada. Ele é o ex-garoto prodígio do marketing político que deu várias vitórias a Bill Clinton, e atual comentarista de televisão. “Em 1994 os eleitores esperavam uma reforma no Legislativo. Hoje ninguém acredita que George W. Bush irá reformar nada em Washington. Afinal, ele é o candidato do establishment. Além disso, os ultraconservadores sozinhos não têm força para eleger um presidente americano. Quem quiser chegar à Casa Branca terá de contar com o apoio da maioria moderada. Bush tentará afastar-se de seus aliados na direita, mas será muito difícil. A direita religiosa é como o diabo: quando se faz um pacto com ela, não há como voltar atrás”, diz Stephanopoulos.