Na praia onde seus antepassados assistiram, assustados e curiosos, à primeira missa rezada no Brasil, crianças pataxós aproveitam as conchinhas e a areia para aprender matemática. “É mais gostoso e fresquinho”, diz um dos pequenos, com os olhos escuros cheios de prazer. A alegria de estar numa aula a céu aberto é recente. Apesar do cenário convidativo, na reserva indígena de Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália (BA), como em outros municípios da região, pouco se aproveitava o ambiente rico e gratuito. Nas creches e salas de pré-escola atendia-se o básico e treinava-se para a alfabetização. Esse foi um dos primeiros conceitos derrubados pelo programa de formação desenvolvido no Sítio do Descobrimento da Fundação Orsa em parceria com prefeituras. O projeto de atendimento a crianças de zero a seis anos, que envolve Porto Seguro, Belmonte, Eunápolis, Prado e Cabrália, baseia-se no conceito de que criança precisa mais do que um lugar para ser guardada e que brincar e se desenvolver estão entre seus direitos básicos. Alzira Ferreira, Inajá Pataxó para a sua tribo, 37 anos, atende à única sala de pré-escola da reserva e já detecta vantagens da mudança. “Saio com eles pela aldeia, vamos à beira do rio. Tudo se transforma em conhecimento e a aula fica mais animada”, diz ela.

Há um ano, no início do projeto, valorizava-se tudo o que vinha de fora, as creches atendiam à comodidade dos adultos, o espaço para as crianças era limitado e a relação entre professores, crianças e familiares era distante. O mimeógrafo, agora aposentado, era a grande arma. “Logo que chegamos, uma cena virou ícone do que precisava mudar. Uma menina de três anos, de chupeta na boca, trazia debaixo do braço um calhamaço de lições mimeografadas que mal podia carregar. Era a sua ‘produção’ que ela mostrava com orgulho”, lembra Cleuza Repulho, coordenadora do projeto. Um dos eixos centrais do trabalho é a valorização da realidade das crianças. “Com tanta madeira, argila, areia à disposição, as crianças brincavam, quando muito, com brinquedos de plástico”, conta Emília Cipriano Sanches, doutora em Educação pela PUC de São Paulo, uma das mentoras do projeto pedagógico.

Nem mesmo a importância de uma creche estava clara. Em Prado, cuja população de 25 mil habitantes dobra no verão, a Creche Municipal Irmã Dulce, única na área urbana, se transformava em QG do reforço policial chamado a atender a cidade. Justamente no período em que as mães têm mais chance de emprego não havia onde deixar as crianças. E as já precárias instalações da creche pioravam. Mas isso é passado. Um piso cerâmico substituiu o vermelhão, trazendo mais asseio. Os poucos livros ganharam um canto. O quintal está sendo limpo e os brinquedos enferrujados darão lugar a outros, de madeira. Até os vasos sanitários, na falta de apropriados, foram afundados no solo para se adequarem às crianças. “A próxima meta é a horta”, conta Suzete Braga, coordenadora de educação infantil na cidade. A creche comemora ainda a compra de uma geladeira, de um freezer e de um liquidificador.

A mais radical mudança, no entanto, está na cabeça das professoras, que não mediram esforços para participar da capacitação. Elas saíam às três da manhã da cidade, distante cerca de três horas de Porto Seguro, para ir aos cursos. Voltavam à noite e ainda enfrentavam a ira dos maridos. Essas mulheres compreenderam que eram agentes de mudança. A baiana Maria José do Carmo, 45 anos, que se formou depois de criar cinco filhos, relata que antes as professoras se limitavam a cuidar das crianças e dar “muita lição”. A brincadeira acontecia no recreio entre elas. As professoras não participavam. Com o sorriso largo apertando os olhos, ela confessa que agora sai da creche exausta, mas satisfeita. “Se for preciso, rolo no chão com elas”, diz. A pedagoga Emília explica por que prestar atenção e participar da recreação. “A brincadeira é o laboratório onde a criança elabora suas experiências e suas dificuldades.” A reação das crianças é imediata. A doméstica Joíldes da Conceição, 30 anos, já percebeu alterações nas conversas do filho Lucas, cinco anos, que, com a irmã, Jamile, dois anos, frequenta a creche. “Ele chega contando: ‘Mãinha, fizemos massinha de farinha e água de cenoura. Mãinha, fomos passear’”, relata.

Quintal liberado – Na creche municipal Ayrton Senna, em Eunápolis, centro comercial da região, as condições sempre foram boas. O prefeito apelidado de Paulo “Dapé” (PMDB) sempre deu apoio, mas ela era o que se chama uma instituição higienista. As crianças, sempre limpas e bem-comportadas, só usufruíam do belo quintal em dias marcados. “Como a farda (uniforme) é da creche, até a lavadeira interferia nas aulas”, conta a monitora Ilma Carvalho, 50 anos. A resistência foi inevitável. “Pensávamos: ‘Como? Menino agora vai mandar na creche?’”, lembra a diretora Ana Carla Torres Silva, 24 anos, que chegou a ostentar o apelido de “Sargentão”. Uma fase suplantada pelas salas coloridas com painéis e objetos feitos de sucatas pelas crianças. No corredor três envelopes com as palavras “felicito”, “critico” e “proponho’ escancaram a mudança de foco. “A criança deve relatar suas queixas, mas deve sugerir uma solução e elogiar algo que ela gosta. Isso faz parte da pedagogia do bom senso de Celestin Freinet, educador que revolucionou o ensino na França na década de 20”, esclarece Emília. Mas o golpe final à ditadura foi quando as crianças fizeram o jardim. “Nunca pensei que permitiria”, diz Ana, que tem atendido patroas loucas por uma vaguinha na creche dos filhos das empregadas.

No bairro pobre de Mirante de Caravelas, em Porto Seguro, a Creche Tio João também foi remodelada. As crianças ganharam o direito de passear pelos arredores e nas finas faixas não cimentadas do quintal brotam flores e ervas medicinais. O dia passa rápido com as brincadeiras e o teatro de fantoches feitos de cabaça de coco e retalhos. “Aprendemos que mesmo jornal velho é material de criação”, conta a professora Francismara Santos, 20 anos.

Outro trabalho, muito especial, chama a atenção em Porto Seguro. A oito quilômetros do centro, por um caminho cheio de poeira e buracos, chega-se ao Baianão. O bairro duplicou a populacão de Porto Seguro com cerca de 40 mil habitantes vindos das roças de cacau. É em suas casas simples e inacabadas de alvenaria que acontece o Projeto Sementinha.

Na falta de professores, a Fundação Orsa qualificou as próprias mães para o atendimento. Como num ritual, às sete da manhã, as crianças – a maioria só – vão ao encontro das mães-professoras na caixa-d’água. Dividem-se em grupos e seguem para a casa escolhida. Ao chegar, deixam na porta os chinelinhos, sentam-se no chão e tomam chá com bolachas ou bolo. Só então a aula começa. Uma história, uma conversa, um desenho para expressar o que aprenderam. O pó de serra ou o sumo da erva-cidreira misturado à cola dá forma e cor à produção dos meninos. O barro, farto ali na porta, é também uma alternativa de matéria-prima. Aproveitar os recursos à disposição é uma lição que começa a ser incorporada. “Um dos melhores remédios para desidratação é a água-de-coco e essas crianças sofriam com diarréia enquanto os cocos caíam na cabeça de seus pais”, lembra Cleuza Repulho, da fundação. Todo esse trabalho não está mudando apenas a realidade das crianças, mas de toda a comunidade envolvida. Tímida, Noemi Santos, 26 anos, uma das mães-professoras, sempre ouviu do marido que não “dava para trabalhar em nada”. Agora só recebe elogios. “Ganho um salário e voltei a estudar. Eu ajudo as crianças e elas me ajudam”, resume. Como repete a pedagoga Emília: este é um projeto para formar autores. E basta uma mãozinha para as pessoas revelarem a capacidade de procurar novos e melhores caminhos.