Em meados de 1996, o garoto O., então com 15 anos, praticou seu primeiro assalto. “Me lembro como se fosse hoje. Foi um açougue e foi muito fácil. Meu pai tinha morrido e minha mãe estava sendo despejada. Fiquei desesperado e resolvi participar. Deu certo. Com o dinheiro pagamos as contas e eu comecei: padaria, joalheria, todo tipo de estabelecimento”, lembra. O garoto ficou quase rico, comprou carro, até uma padaria. “Resolvi parar com o movimento, voltei a estudar, mas um dia me caguetaram. Aí a casa caiu.”

Reconhecido por testemunhas, O. foi parar em fevereiro de 1998 na Febem. Saiu de lá em maio deste ano. Hoje tem liberdade assistida e está cursando o segundo colegial em São Paulo. Sonha em prestar vestibular para Direito. “Quero ser advogado para ajudar os que estão lá dentro.” Na quarta-feira 8, três dias antes do início da rebelião que resultou na fuga de 450 internos da Unidade de Atendimento Provisório (UAP) – a mesma onde ficou por 90 dias –, O. deu a seguinte entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – Você se lembra do seu primeiro dia na Febem?
O. – Sim. Um funcionário me falou: “Bem-vindo a UAP, ala A, você nunca vai esquecer dessa ala. Aqui é mão pra trás quando tiver em pé, sim senhor, não senhor, e vai ficar sentado o dia inteiro até o traseiro ficar quadrado.” A minha recepção foi uns murros no meu estômago para eles terem certeza de que eu tinha entendido o recado.
ISTOÉ – Como é a relação entre os internos?
O. – Não pode arrotar no refeitório, não pode soltar gás perto dos outros, tem ao menos que avisar. Não pode xingar. Essas são as regras entre nós. O que importa é o respeito. Tendo respeito e humildade, dá para sobreviver em qualquer sistema. Não importava o BO (Boletim de Ocorrência) de cada um, estavam todos na mesma situação: num inferno onde dormem 15 menores em um cubículo, a comida é fria, o banho é gelado e a gente ficava sentado o dia inteiro.
ISTOÉ – E os funcionários?
O. – Eles humilham a gente. Mandam a gente colocar a testa na parede e ficar meia, uma hora lá, sem poder se mexer. Isso é o refresco. Depois nos arrastam para a coordenadoria e começam a bater. Não fazem trabalho de recuperação nenhum. Do jeito que eles tratam, a maioria dos menores pensa no quê? Em fugir. Eu só pensava que quando eu estivesse fora dali o mundo estava lascado na minha mão, não ia ter dó de ninguém. Não imaginava que alguém podia ser tão humilhado como eu fui.
ISTOÉ – Como era o dia-a-dia lá?
O. – Passava o dia sentado. Ficava torrando no sol, perdido no tempo. Não tinha relógio, nada. Só dá para se orientar pela troca de plantão, hora de almoço. Acordava às cinco da manhã e ficava no pátio até as sete, colado um no outro, com a mão em volta do joelho, esperando a troca de plantão. As sete fazem a contagem, meia hora depois servem o café. É um café com leite azedo, porque eles misturam água. Depois a gente ficava sentado no pátio de novo. Não pode nem circular. Para trocar uma idéia, tem que pedir autorização pro monitor. Se a gente anda demais, eles já levam para um canto e a gente apanha sem saber o motivo. A única diversão era o futebol, que rolava quando os monitores recebiam salário e ficavam de bom humor. Eles liberavam a bola e pegavam uns 30 para jogar, enquanto os outros 240 ficavam assistindo. Agora, como que eu ia jogar bola se tinham 200 querendo jogar e não podiam? É muito cruel.
ISTOÉ – E depois?
O. – É a hora do banho e os monitores aproveitam para humilhar. Dão três segundos para o banho e começam a contar do três. O banho de todos os 270 não dura nem cinco minutos. Depois a gente fica até as sete esperando na sala de tevê. Sempre colado um no outro, sem se mexer. No calor é difícil, e eles ficam falando: “Não quero ouvir nem um pio.” Basta a gente pedir para o do lado um pouco de espaço que já é arrastado. E aí é couro.
ISTOÉ – Eles batem com o quê?
O. – Madeira enrolada no jornal para não deixar hematoma, toquinho de cabo de vassoura, mangueira, e até com a mão. Só não batem na cara. Batem no rim, no estômago, nas costas. Eles sabem onde pode. E quando tem rebelião é cruel, aí eles batem em qualquer lugar. Todos os funcionários lá são carrascos, não tinha um que desse para conversar. Muitos usam droga lá dentro, na frente dos internos. Um dia me ofereceram cocaína e eu disse que não. Tomei um tapa. “Qualé ladrão, tá virando bonzinho?” Outro foi e disse que queria. Esse apanhou muito mais. E eu fiquei vendo, sem poder fazer nada. Dá muita revolta. Inclusive teve uma rebelião que começou com o espancamento de um menor. Na confusão me bateram tanto que eu desmaiei. Essa foi minha sorte, pois pararam e me jogaram debaixo do chuveiro gelado. “E aí, vagabundo, não segurou o refrão?”
ISTOÉ – Que tipo de tortura você sofreu lá?
O. – Estilo assim: “Enquanto você estiver aqui vai ser o inferno. Inferno de vagabundo. Torça para seu bonde passar logo e você ir para uma unidade educacional.” Nem gosto de lembrar disso, foram os piores momentos da minha vida. Na UAP não teve um dia em que eu não fui humilhado. A tortura lá é diária, ou física ou psicológica, não tem jeito. Até o fim do ano, aquilo vai explodir.
ISTOÉ – Você acha que sua medida sócio-educativa foi cumprida?
O. – O que eu passei na UAP ninguém vai me pagar. Agora eu estou livre. Quero ver alguém me mandar colocar a cabeça na parede de novo! Mas fico pensando em quem está lá dentro. Eles estão sofrendo. Se no meu tempo já era difícil, imagina agora que tem 400 menores por ala. A rebelião é natural. Sabe o que é ficar 24 horas por dia encostado numa pessoa? Só de pensar eu passo mal. Não que minha vida esteja fácil, lá em casa às vezes falta comida, estamos sofrendo uma ação de despejo, mas nada que se compare ao que os outros estão sofrendo lá dentro.