Brasília, 19 de julho de 1999.

Senhor Presidente.

Tomo a liberdade de dirigir-lhe estas palavras, por indeclinável dever de lealdade. Nomeado para o honroso cargo de ministro da Justiça, procurei cumprir a missão preservando a dignidade do cargo, a transparência, a honradez e a probidade. Não obstante a tradição do Ministério da Justiça e sua vocação jurídica, nunca procurei ostentar atributos que não possuo.

Vossa Excelência é a mais expressiva testemunha do relacionamento absolutamente respeitoso que mantivemos nesse período de 465 dias em que fui ministro da Justiça. É também testemunha maior da minha inflexível luta pelo Brasil. Exerci o cargo no limite das minhas forças físicas e com o sacrifício de minha família.

À sua confiança, respondi, sempre, da única maneira possível: com trabalho, lealdade e correção. E é justamente por isso que lhe escrevo esta carta.

As circunstâncias me obrigam a tocar no assunto. O senhor governador de São Paulo explicitou publicamente divergências. Não deixo, pois, para fazer este relato mais tarde. Faço-o no momento em que deixo o Ministério.

Jamais tive dúvida quanto ao caráter indecoroso do pedido para que o ministro da Justiça transferisse a competência para o Estado de São Paulo realizar concorrência para a Inspeção Técnica de Veículos, determinada pelo Código Nacional de Trânsito. A pessoal e obstinada condução do caso revelou suspeito interesse pelo negócio que cria um mercado de 1 bilhão e 500 milhões de reais por ano. Ao telefone, o governador falou comigo pelo menos duas vezes sobre o assunto. Adiantou que já havia mantido entendimentos com empresas interessadas. A pedido dele, também recebi outras pessoas interessadas. Não cedi às pressões e segui o caminho da lei. Encaminhei a questão ao Supremo Tribunal Federal, que, por decisão unânime, entendeu ser essa matéria da competência do ministro da Justiça e não do governador.

Pelo mesmo motivo, não compareci a inaugurações oportunistas, até de penitenciárias inacabadas, financiadas com recursos do Ministério da Justiça, como desejava o governador, com objetivos meramente eleitorais. Após as eleições, insistindo nessa conduta reprovável, o governador solicitou que prorrogássemos por mais um ano o prazo de conclusão das obras que ele já havia inaugurado. É claro que novamente não concordei.

Esse governador que subitamente passou a atacar o ministro da Justiça foi o mesmo que pediu, insistentemente, através do digno ministro José Serra, que eu gravasse depoimento de apoio à sua candidatura ao governo de São Paulo. Recusei-me novamente, observando orientação de Vossa Excelência no sentido de evitar esse procedimento em disputas que confrontassem candidatos da base de sustentação do governo.

A irritação do governador paulista com minhas atitudes chegou ao ápice quando revoguei a Concorrência nº 02/97 – DPF, consubstanciada no processo 08200007434/97-55, no valor de 170 milhões de reais, de interesse da Empresa Tejofran Saneamento e Serviços Gerais Ltda., muito ligada a ele e a seu filho, um certo Zuzinha, que detinha 20% do consórcio. Após ganhar a licitação, essa gente passou a exigir um escandaloso indexador em moeda americana com o obscuro objetivo de reajustar seus preços. Rejeitei a trama lesiva aos cofres públicos.

Sobre o episódio da nomeação do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, o governador de São Paulo afirmou que causei constrangimentos. Vossa Excelência sabe que não é verdade. Inclusive manisfetou a mim, ao deputado Michel Temer e ao Moreira Franco que a culpa pela crise decorreu da demora para nomear o diretor, cujo nome apresentei tão logo me foi pedido. Por isso, Vossa Excelência entendeu o meu indisfarçável constrangimento de empossar um torturador na direção-geral da Polícia Federal.

Inopinadamente, o governador de São Paulo começou a se pronunciar publicamente exigindo o esclarecimento do caso do grampo do BNDES, certamente querendo isentar alguém. Compreendo as dificuldades encontradas para esclarecer o crime. Essa elucidação seria facilitada se os que entregaram as fitas revelassem de quem as receberam.

Foram estes os interesses que contrariei. Com a minha conduta não expus o governo e preservei a minha dignidade, a honra do cargo, a moralidade pública e a confiança que mereci.

Cordialmente

Senador Renan Calheiros