Renan chegou ao Ministério da Justiça de Fernando Henrique Cardoso na cota do PMDB. Como militante do partido, atuou os 465 dias em que resistiu no cargo. Sem ser advogado, tentou mudar a pauta do Ministério, mirando seu foco em assuntos de mais apelo popular, como as etiquetas de preços dos supermercados e um novo Código Nacional de Trânsito. No meio do caminho de Renan apareceu um inimigo poderoso: o governador de São Paulo, Mário Covas, amigo de FHC e principal opção do PSDB na sucessão de 2002. Foram vários os atritos.

Convencido de que Covas foi o mestre-cuca de sua fritura, o senador resolveu encaminhar ao presidente da República, em carta datada do dia 19 julho, dia de sua demissão, uma série de denúncias graves contra o governador. Dois meses depois, o Palácio do Planalto não soltou um pio sobre a correspondência nem sobre o fortíssimo discurso feito na tribuna do Senado, na terça-feira 14. "O governador explicitou divergências durante minha gestão no Ministério da Justiça. Todas elas geradas de interesses inconfessáveis, que cobririam de lama a até então imaculada biografia do vetusto governador paulista", disse Renan, em alto e bom-som. As palavras ecoaram, mas não houve esclarecimentos, além de uma interpelação judicial, protocolada em 4 de agosto.

Respostas – Há um dilema no ar. Ou o senador Renan Calheiros, que foi ministro da Justiça, é um irresponsável, leviano, que perdeu a cabeça junto com o cargo, ou existe algo de podre no reino de Covas. O País espera uma resposta desde o fim da tarde de 19 de julho, quando o alagoano Everaldo França, assessor de Renan, caminhou 500 metros entre o Ministério da Justiça e o Palácio do Planalto para protocolar na Casa Civil um envelope pardo com um conteúdo bombástico. O documento foi imediatamente remetido ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que o aguardava. Em apenas 54 linhas, o ministro fazia duras acusações a Covas e instava o presidente a tomar as devidas providências. Fernando Henrique tomou duas atitudes: enviou uma cópia da carta ao amigo Mário Covas e solenemente omitiu-se. No discurso da terça-feira, Renan autorizou o presidente a divulgar o teor de sua carta. Queria suas denúncias passadas a limpo. No palácio, não houve pronunciamento sobre o assunto. Uma cópia da carta da discórdia foi obtida por ISTOÉ, sob sigilo.

O texto, de duas páginas, acusa o governador de tráfico de influência na tentativa de transferir para empresas amigas o serviço de inspeção de veículos, uma nova exigência do Código Nacional de Trânsito que ainda não foi aplicada, mas que renderá bilhões a seus administradores. "A pessoal e obstinada condução do caso revelou suspeito interesse pelo negócio que cria um mercado de R$ 1,5 bilhão por ano. Ao telefone, o governador falou comigo pelo menos duas vezes sobre o assunto. Adiantou que já havia mantido entendimentos com empresas interessadas. A pedido dele, também recebi outras pessoas", escreveu Calheiros. Procurado na semana passada para esclarecer trechos da carta, o senador revelou que o secretário de Segurança, Marco Vinício Petrelluzzi, esteve em seu gabinete tratando do assunto, a pedido de Covas. "Ficou claro que a empresa beneficiada seria a Tejofran", disse referindo-se à empresa de Antônio Dias Felipe, amigo e compadre do governador, e teria a participação indireta de Mário Covas Neto, o "Zuzinha", filho de Covas. A Tejofran, que já vem engordando seu caixa com alguns polêmicos contratos com o governo paulista, promete ampliar seu raio de ação. "Um executivo da Tejofran me disse que a empresa decidiu avançar sobre o governo federal", diz o deputado federal Luiz Antônio Fleury Filho (PTB-SP).

Lobby – Talvez não precise nem avançar. O novo ministro da Justiça, José Carlos Dias, está se encarregando de transferir para os Estados – e, em especial, para São Paulo – a administração dos serviços de inspeção de veículos, o que deve render aos cofres paulistas cerca de R$ 1 bilhão por ano – receita compatível com a maior frota do País. "Estou afastando isso de mim", explica-se o ministro, assustado com o forte lobby que diz estar rondando seu gabinete (Leia entrevista ao lado). A transferência foi formalizada no dia 31 de agosto, numa reunião extraordinária do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A presteza dessa decisão, porém, destoa das ações do ministro Dias em outras áreas. "Ele não agregou nada ao governo. Não está ajudando nem nas causas ligadas ao STF", admite um assessor de FHC.

Passaporte – Entre outros trechos da carta de Calheiros, chama a atenção o que trata do processo 08200007434/97-55 do Departamento de Polícia Federal. "A irritação do governador paulista com minhas atitudes chegou ao ápice quando revoguei a Concorrência 02/97 – DPF, no valor de R$ 170 milhões, de interesse da empresa Tejofran Saneamento e Serviços Gerais, muito ligada a ele e a seu filho, um certo Zuzinha, que detinha 20% do consórcio. Após ganhar a licitação, essa gente passou a exigir um escandaloso indexador em moeda americana com o obscuro objetivo de reajustar seus preços", escreveu o então ministro demissionário. A Tejofran, em consórcio com a Siemens, tentou dois recursos administrativos para dolarizar o valor de seus serviços, o que foi negado pelo consultor jurídico do Ministério, Byron Costa, que chegou ao cargo em 1995 e foi demitido por Dias. "A repactuação violaria o procedimento licitatório", anotou Byron num despacho de 25 de maio.

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O nome comum nos conflitos entre Covas e Calheiros é Tejofran, uma empresa adquirida por Antônio Dias Felipe em 1975 com o objetivo de ser uma firma "guarda-chuva", que disputa concorrências públicas e privadas e depois terceiriza a prestação dos serviços. A estratégia rendeu à empresa um grande êxito financeiro e, durante as duas últimas décadas, permitiu que ela se expandisse por serviços tão diversos como saneamento, confecção de passaportes, telecomunicações, atendimento hospitalar, energia elétrica, fornecimento de mão-de-obra, administração de rodovias e conservação de ferrovias e metrô. Ao todo, a empresa de Antônio Dias Felipe tem 23 escritórios instalados pelo interior do Estado e 14 mil funcionários, o que lhe garantiu um lugar de destaque entre os maiores fornecedores do governo paulista. A saga empresarial só não escapou de alguns arranhões judiciais. Em 1997, a Tejofran foi denunciada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) por explorar o pedágio na rodovia Carvalho Pinto sem licitação. Também naquele ano, a 6ª Vara da Fazenda Pública em São Paulo determinou a indisponibilidade dos bens da empresa por desrespeitar contrato firmado com a Eletropaulo. E uma auditoria realizada pelo governo detectou a existência de um esquema de corrupção envolvendo Tejofran e Power, outra empresa de Dias Felipe, na prestação de serviços aos hospitais Geral de Taipas, Maternidade Interlagos e Regional de Osasco.

Amigos – A relação entre Covas, Dias Felipe e Tejofran, entretanto, é mais antiga do que os problemas com a Justiça e o TCE. Antes de ser governador, o tucano montou seu QG político na sede da empresa, no centro de São Paulo. Ali usava salas e funcionários sem maiores cerimônias. Hoje, costuma dizer que o aluguel foi pago "parte com amizade, parte com dinheiro". Não há documento público sobre esse pagamento. Mas a prestação de contas do tucano ao governo, em 1994, informa que, no sentido inverso, R$ 180 mil deixaram as contas da Tejofran e da Power e foram doadas para a campanha. Os contratos do governo estadual com a Tejofran subiram de R$ 20 milhões em 1994 para R$ 142 milhões em 1995, segundo levantamento feito pela Folha de S.Paulo com dados do TCE. Curiosamente, os contratos da empresa com o governo federal também aumentaram com a eleição de FHC. Em 1995, os pagamentos da União à Tejofran somaram R$ 3,9 milhões. No ano passado, já eram de R$ 5,5 milhões.

Na carta, Renan também acusou Covas de inaugurar penitenciárias inacabadas durante a campanha e de pedir mais recursos. Dias escalou o paulista Nagashi Furukawa para ocupar a direção do Departamento Penitenciário Nacional. Furukawa começou a negociar novas transferências para São Paulo. Após uma entrevista coletiva na sexta-feira 17, o governador disse que o local ideal para a discussão é a Justiça: "Não vou dar colher de chá para o senador me responder da tribuna do Senado. Podemos fazer isso em uma esquina qualquer, mas o meu caminho preferido é a Justiça. Lá, a gente troca chumbo à vontade."

Colaboraram: Ana Carvalho e Angélica Wiederhecker (SP)


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