15/09/1999 - 10:00
O psiquiatra e psicanalista Rubens Hazov Coura, 50 anos, estuda há mais de 20 as pessoas que tomam antidepressivos. Formado pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), sua principal tarefa é analisar com muita atenção os relatos dos pacientes que sobem até o 19º andar do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, em São Paulo, e se deitam no divã preto de seu pequeno e aconchegante consultório, equipado com um frigobar sempre abastecido de água e refrigerantes light. Foi a partir dessa análise que Coura se deu conta e identificou dois efeitos nocivos dos remédios antidepressivos: a indiferença e a persistência da destrutividade. "São efeitos terríveis. Não são evidentes e o paciente não fala deles", diz. Essas descobertas, que fazem parte de suas atuais pesquisas para a tese de doutorado, o uso abusivo dos antidepressivos e as falhas nos diagnósticos de quem sofre de depressão estão nesta entrevista concedida por Coura a ISTOÉ.
São dois efeitos terríveis, diferentes dos efeitos colaterais do antidepressivo. Um deles é o fato de a pessoa ficar aquilo que os familiares chamam de indiferente. Ela não está mais deprimida, não fica chorando todos os dias, sem querer sair de casa. Mas ela fica outra pessoa. Isso é um horror. É abominável.
O paciente fica como se fosse uma outra pessoa porque o antidepressivo induz a um contentamento que não depende dos fatos da vida. Ele não fica contente porque conseguiu se formar na faculdade, porque teve um bom resultado no trabalho ou porque a família vai indo bem. Não fica feliz porque conquistou coisas, que é o natural. Ele se contenta por ação química. Os fatos da vida dele são os mesmos. E também não houve um amadurecimento emocional para aceitação de eventuais fatos nocivos e desagradáveis. Está tudo igual. O medicamento induz ao contentamento indiscriminadamente. Por isso que digo que é a ação do antidepressivo.
Pode ser muito maléfico porque a pessoa, muitas vezes, não fará as coisas que tem de fazer para obter um contentamento na vida.
Alguém que vai prestar um vestibular para entrar numa faculdade com a qual sempre sonhou. Sob o efeito do antidepressivo ele pode se contentar com qualquer uma porque está contente por antecipação. A pessoa não espera o fato da vida acontecer para ficar contente. Já está contente por ação química. Então ela ou nem presta vestibular, como eu vi. "Para que vestibular?", pensa. Ou deixa de querer a faculdade que pretendia.
Isso nós não sabemos ainda. Mas ocorre com muitas pessoas. O mecanismo exato, que leva a essa indiferença, é uma das coisas que quero apurar em meus estudos atuais. Vi gente perder o emprego, empresários perderem a própria empresa…
Um deles, por exemplo, tinha uma empresa, com mais de 40 empregados, que funcionou muito bem durante anos. Depois de algum tempo, começou a ir mal e precisou se adaptar à situação econômica do País. Por conta disso, o empresário ficou deprimido e foi medicado com antidepressivo. Ele ficou mais contente, sem que nada no sistema da empresa dele tivesse mudado. Nada. Ele começou a não se importar mais com as queixas dos funcionários, com a queda nas vendas, com o sócio desleixado. E arrumava explicações para as coisas: "Ah, meu sócio está trabalhando mal porque ele está muito desgastado. Afinal ele é humano" ou "Os empregados estão insatisfeitos, mas hoje em dia eles reclamam muito mesmo?" Ele não fez nada para melhorar as coisas e perdeu a empresa.
Ele tinha explicação boa para tudo. Estava muito otimista, diferente de antes. O antidepressivo deveria fazer ele aceitar melhor as deficiências da empresa para poder saná-las e não deixar que ele perdesse o negócio.
Havia um outro que passou a se desinteressar pela educação dos filhos, apesar de sempre ter-se preocupado com isso. Queria que o filho passasse em determinada faculdade, etc. e com o tempo começou a ficar indiferente a isso.
Isso não deve ocorrer. A indiferença tende à alegria. A pessoa não vai pensar em pular do prédio. Vai pensar que não há com o que se preocupar, que a vida é boa.
Ele se dá como se apenas uma parte da pessoa reagisse de forma não depressiva. Em psicanálise nós falamos que na depressão existe uma fúria sádica do sujeito contra ele mesmo, que o faz querer se autodestruir. O antidepressivo pode agir somente numa parte disso. Ou seja, a pessoa sai daquele estado triste, mas permanece a fúria sádica, só que não mais contra si, mas contra alguém próximo.
É aquilo que leva o depressivo a se culpar. Ele se acha a pior das pessoas, acha que fez tudo errado, que agiu mal. Essa é a fúria sádica contra si mesmo. Sob o efeito do antidepressivo, ele pode ficar contente e essa fúria se voltar contra alguém próximo.
É como se outra pessoa, e não mais ele, tivesse de ser punida. Mas ele não fala isso claramente.
Sim. E não era uma característica da pessoa antes de estar deprimida e tomar o medicamento. Passa a ser. Lembro-me de um paciente que começou a fazer de tudo para arruinar a vida da esposa. Ela trabalhava numa empresa dele e ele deu um jeito de rebaixá-la de cargo. Deu um jeito de o filho, que era o queridinho dela, ir para fora de São Paulo estudar no lugar mais longe que ele achou. Vendeu o título do clube que ela gostava e que ele sempre achou muito bom. Fazia tudo para restringi-la. Quando ele saiu da depressão, parou com tudo isso.
De alguma forma ele pode melhorar só uma parte da depressão. Nesse caso que citei, a melhora seria ele não mais se julgar culpado de coisas que não fez. Voltar a fazer as coisas que gostava. Isso ele voltou, só que junto com isso passou a tratar a esposa assim.
Numa consulta rápida não dá. Vai parecer que está tudo bem e na verdade não está.
Por meio do acompanhamento prolongado dos pacientes e de uma observação mais profunda, percebendo o que o paciente refere, como ele refere. O paciente não fala delas. E não são claras até para o profissional porque a pessoa, afinal, não está mais deprimida. Não é simples perceber que aí pode haver algo de muito errado.
Provavelmente sim. Já vi com os novos (pós-Prozac) e com os clássicos.
Sim. Não é só psiquiatra que prescreve. Em alguns locais do mundo, como Estados Unidos e Inglaterra, cerca de 60% das prescrições de antidepressivos são feitas por clínicos gerais, ginecologistas, cardiologistas, entre outros. No Brasil, provavelmente, é parecido porque não há estatística confiável que eu conheça a esse respeito aqui.
Claro, pelo conhecimento que ele tem da área. E não é qualquer psiquiatra. É o profissional que vai acompanhar o paciente ao longo de meses. Mas o que muitas vezes se vê aqui é assim: a pessoa tem uma receita e, quando acaba, pede para um médico qualquer ir renovando o medicamento. Ela vai fazer uma consulta num gastroenterologista e aproveita e pede a receita do antidepressivo que o psiquiatra passou há meses. Isso sem falar nas pessoas que se automedicam. Alguém que comprou o remédio, mas não quer tomar mais e dá a caixa para o primo, para o colega de escritório.
Existem milhões de deprimidos, mas há influência da propaganda. Eu acredito que isso induz o paciente a extorquir do médico uma receita de antidepressivo.
A maioria dos médicos tem boa vontade de atender. Não fica fascinada com medicamentos novos porque já viu medicamentos que prometiam muito e não cumpriam. A população é mais vulnerável a essa propaganda. Vejo entusiasmo dos leigos e não dos médicos. Como o médico vai negar uma receita para um paciente que está solicitando um remédio para melhorar, mesmo que ele não acredite muito no medicamento?
Creio que ele não saiba disso. Porque se a pessoa já vem tomando o medicamento e não fez mal, não deu efeitos colaterais, ele imagina que esteja indo bem. É um raciocínio aceitável.
Sim. Há pessoas que sofrem de angústia, mas são tratadas como se fossem deprimidas. É claro que o resultado não pode ser muito bom.
A angústia é aquela irritabilidade, nervosismo. A pessoa brava, impaciente, que não consegue se concentrar. Trata-se com tranquilizante e psicoterapia. Já o deprimido sente tristeza, melancolia. É uma pessoa mais quieta, parada, com falta de iniciativa.
Elas podem ficar mais angustiadas ainda. Dependendo do medicamento, ele pode ajudar um pouco na angústia, mas não tem o tratamento adequado. Não há uma melhora efetiva. Mas existe o oposto também. Pessoas que pensam em embelezamento, plásticas, musculação, e não percebem, às vezes, que estão escamoteando uma angústia, uma depressão. Fazem um verdadeiro culto da aparência. Por isso, você vê pessoas deprimidas, angustiadas, que vão cuidar do corpo. As mulheres, por exemplo, mais frequentemente, querem fazer uma plástica rejuvenescedora. Nunca ouvi falar numa mulher que, por estar mais jovem, bonita, com plástica, ginástica, musculação, consegue o que muitas vezes quer, que é um companheiro ou manter o marido. Não consegue. Aquela angústia, aquela depressão que está na base, impede que ela consiga.
Esses dois efeitos têm de ser muito bem acompanhados. Mas eu pergunto: o paciente, seja ele quem for, tem de ser bem acompanhado ou não tem? Tem de haver um acompanhamento mais estreito. Tanto do psiquiatra quanto do psicanalista. Além disso, a pessoa não pode imaginar que só com um comprimido vai conseguir se livrar da depressão. Me parece ingênuo esperar isso. "Ah! a serotonina normalizou." Ela é apenas um dos neurotransmissores (substâncias que fazem a comunicação entre os neurônios) envolvidos no processo da depressão. Não é tudo. Querer resolver o problema sem psicoterapia, sem uma orientação estreita, me parece difícil.
Deve ser feito um acompanhamento rigoroso do paciente pelo mesmo psiquiatra que receitou o antidepressivo. A relação entre o médico e o paciente pode até alterar a dosagem do remédio. Se o paciente muda de médico rapidamente, ele costuma piorar e pode precisar até de uma dosagem maior.
Sim. Deve optar por um e ficar com ele. Não telefonar para a secretária e pedir para ela deixar a receita na portaria. Esse médico que ele escolheu precisa vê-lo com frequência e conversar bastante. Saber o que está se passando. Fora isso, esse mesmo paciente deve fazer uma psicoterapia bem-feita com um outro psiquiatra ou um psicanalista.
Da depressão grave é difícil.
Aí pode ser. Depressões não muito severas se beneficiam da psicoterapia, sem medicamentos.
Acredito que, desde que o profissional saiba da existência desses dois efeitos, eles sejam contornáveis.