O assessor de Segurança Nacional do presidente Bill Clinton, Samuel R. Berger, nunca foi um discípulo da dura e crua realpolitik do seu mais brilhante antecessor, o professor Henry A. Kissinger. Como bom democrata, Berger era mais afinado com a política de defesa dos direitos humanos do ex-presidente Jimmy Carter, cujo governo, aliás, ele integrou. O poder deve tê-lo convencido de que seus adversários é que tinham razão. Na semana passada, ao responder por que a Casa Branca evitava pressionar mais duramente a Indonésia a dar um basta nos massacres de civis no Timor Leste, Berger saiu-se com esta: "O fato de termos bombardeado Kosovo não significa que devamos bombardear Dili. A Indonésia é o quarto maior país do mundo. Está passando por uma frágil – mas tremendamente importante – transformação política e econômica", disse ele ao The New York Times. Segundo o jornal, outro funcionário de alto escalão foi mais direto, dizendo que os EUA deveriam colocar suas relações com a Indonésia, um país de 200 milhões de habitantes, acima de sua preocupação com o destino de Timor Leste, um território pequeno e pobre de 800 mil habitantes. Kissinger, que em nome do interesse nacional americano apoiou a Indonésia quando ela invadiu a ex-colônia portuguesa, em 1975, assinaria embaixo. Mas a repercussão a essas posições foi tão negativa que na quinta-feira 9 o próprio Clinton anunciou que os EUA estavam congelando as relações militares com Jacarta. No dia seguinte, o presidente mudou o tom do discurso: "Isso é simplesmente inaceitável. Agora está claro que os militares indonésios estão apoiando a violência das milícias no Timor Leste. O governo indonésio e os militares devem reverter seu curso para deter a violência e permitir uma força internacional para restaurar a segurança." Uma mudança e tanto para quem condicionava o envio de uma força de paz ao Timor à concordância da Indonésia.

Há dez dias, desde a realização de um plebiscito no qual os timorenses decidiram por ampla maioria – 78,5% – que desejam ser independentes da Indonésia, aquele pequeno e triste pedaço de ilha mergulhou numa orgia de carnificina e limpeza étnica. Inconformadas com o resultado, milícias antiindependência – muitas vezes ajudadas pelos soldados indonésios – estão praticando uma política de terra arrasada no país. Armados de facões, machetes e armas automáticas, os milicianos matam, saqueiam, incendeiam casas e edifícios públicos e expulsam centenas de civis de suas casas. O Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT) calcula que mais de mil pessoas foram massacradas e 200 mil já foram obrigadas a deixar o Timor Leste desde 1º de setembro. Até o bispo de Dili e Prêmio Nobel da Paz de 1996, dom Carlos Ximenes Belo, teve sua casa reduzida a cinzas, foi ameaçado e teve de sair do país disfarçado para buscar refúgio na Austrália.

 

Saques e expulsões – Em Dili, os paramilitares mantêm sob cerco o edifício da Missão de Assistência das Nações Unidas ao Timor Leste (Unamet), que abriga cerca de dois mil refugiados. O Hotel Mahkota, que hospedou a maioria dos jornalistas e observadores estrangeiros, foi incendiado. Dos dois mil integrantes da Unamet deslocados para o Timor Leste, apenas 50 ficaram em Dili. Na quinta-feira 9, a Unamet informou que entre os mortos estavam sete membros da Cáritas e o pai do líder guerrilheiro Xanana Gusmão, Manuel. "Há cidades totalmente desertas", relatou um funcionário da ONU. "Os deportados chegam em caminhões e são deixados em campos abandonados ou em instalações militares e policiais. Quem os milicianos pensam ser pró-independência são separados dos demais", acrescentou. "Não saia de Dili. Se a situação aí está ruim, pior lá fora. A estrada para Atambua está marcada com um rastro de morte. Vi cabeças fincadas em estacas, corpos decapitados e pessoas alvejadas e esfaqueadas até a morte", contou uma mulher que conseguiu fugir de Dili com seu filho.

 

"Plano B" – "Isso não é uma guerra civil, é um ataque deliberado e planejado em volta de uma mesa pelos militares indonésios, que usam as milícias como peões", acusou o bispo Ximenes Belo. A acusação faz sentido. Esses grupos paramilitares foram criados pelo Exército no começo do ano com o objetivo de sabotar a votação por meio da violência. O plebiscito do dia 30 de agosto transcorreu num clima de surpreendente tranquilidade, mas a pancadaria recomeçou assim que o pleito foi encerrado. Mais de 15 mil soldados e policiais indonésios se mostraram incapazes de controlar os milicianos. Mesmo depois de o governo ter colocado o território sob lei marcial, na terça-feira 7, a matança continuou. Segundo muitos analistas, esse caos organizado faz parte de uma estratégia do Exército indonésio denominado "Plano B". O objetivo é a ocupação e a anexação à parte ocidental da ilha de áreas produtivas do Timor Leste e a expulsão em massa de timorenses que votaram pela independência. "É uma limpeza étnica. Dili foi destruída. Todas as áreas comerciais foram incendiadas, saqueadas. É tudo muito organizado, do início ao fim", disse o porta-voz da ONU David Wimhurst.

A crise do Timor Leste fez com que as acusações e recriminações ecoassem pelo prédio da ONU em Nova York, ganhando ressonância em outras partes do mundo. Em estilo dramático, o outro timorense Prêmio Nobel da Paz de 1996, José Ramos-Horta, acusava o governo de Portugal de não ter solicitado o envio de forças de paz para a região. "Teria sido preciso preparar o campo, mesmo antes da votação. Tropas de paz deveriam estar no Timor para garantir as eleições e os resultados democráticos", disse. Por seu lado, o representante português na ONU, António Monteiro, rebatia: "Estamos roucos de pedir a intervenção de tropas. Nós até formalizamos o pedido de uma tropa de observadores antes mesmo da eleição. Portugal previu com antecedência os acontecimentos de agora e manifestou suas preocupações ao Conselho de Segurança. Mas, infelizmente, não fomos ouvidos", disse o diplomata a ISTOÉ.

 

Cenário impensável – E o diz-que-diz não pára aí. Pelo lado do Conselho de Segurança, Peter van Walsum, representante da Holanda e presidente rotativo do CS, rejeita a responsabilidade. "O Conselho de Segurança não pode autorizar o envio de tropas internacionais sem o consentimento da Indonésia. Isso seria um absurdo. Significaria entrarmos em guerra com uma das maiores potências militares da região. É um cenário impensável. O que devemos fazer é conseguir maior empenho e cooperação dos militares indonésios no controle da situação. Estamos também deixando claro que a Indonésia ficará muito malvista perante a comunidade internacional. Isso também significa a interrupção de importantes acordos de ajuda econômica ao país", disse Walsum a ISTOÉ. Resta saber se a indignação de última hora da Casa Branca fará a paquidérmica burocracia do CS mudar de opinião.

Colaborou Osmar Freitas Jr., de Nova York

 

Tropas brasileiras

O Brasil tem dez militares que atuaram no Timor Leste como observadores. São quatro oficiais das Forças Armadas (dois tenentes-coronéis do Exército, um capitão-de-corveta da Marinha e um major do Exército), quatro PMs de Alagoas e dois de Roraima. Fontes do Itamaraty admitem que o País dará apoio ao envio de uma força de paz para o Timor Leste. Tudo vai depender do relatório da missão do Conselho de Segurança da ONU. O problema é dobrar a China, que não aceita o envio de tropas sem o apoio da Indonésia. A Austrália e a Nova Zelândia já têm prontos mais de dois mil soldados de elite. O contingente brasileiro poderia chegar a 200 homens, provavelmente soldados do Exército treinados em guerra na selva e fuzileiros navais, treinados no Pantanal e na Amazônia.

Eduardo Hollanda