No palco da casa de espetáculos paulistana Palace, onde iniciou há uma semana a temporada nacional do show Gal Costa canta Tom Jobim, a cantora baiana tenta quebrar o clima de reverência da platéia com uma brincadeira irônica. Logo nos primeiros versos de Desafinado, que ela gravou no álbum Índia, de 1973, ela interrompe a frase "se você disser que eu desafino, amor" e matreiramente pergunta ao público: "E aí, como fica?" Todo mundo ri, é claro. Porque prestes a completar 54 anos no próximo dia 26, Gal Costa cada vez mais ratifica sua afinadíssima maturidade artística, plenamente entronizada como a maior das intérpretes nacionais. Nada mais natural, então, que só ela pudesse se lançar na delicada empreitada de dedicar todo um espetáculo – que está sendo gravado ao vivo para virar um disco previsto para ser lançado em outubro – exclusivamente à obra de Tom Jobim, o maior compositor da música popular brasileira.

 

Imodéstia – Gal atualiza 23 clássicos tirados com primor de uma produção de cerca de duas centenas e meia de canções em interpretações irretocáveis, mas que – como sempre – alguns enxergam nelas exibições de virtuosismo. Vista desde o início da carreira nos anos 60 como uma intérprete de estirpe, a cantora se irrita profundamente quando tentam lhe impingir a aura de diva gelada. "Elis Regina era só técnica e, na maior parte das vezes, fria; Maria Bethânia é emoção pura. Das três grandes cantoras brasileiras, que são Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa, eu sou a que faz o equilíbrio entre estes dois extremos", retruca ela com a imodéstia dos que sabem que não precisam ser modestos. Tom Jobim, que entendia do assunto, a considerava sua cantora preferida. Além de sempre convidá-la para shows nos Estados Unidos, sonhava gravar um álbum juntos. Devido aos desentendimentos entre as respectivas gravadoras, o trabalho nunca foi adiante. Agora, Gal repara o erro fonográfico e aproveita para lançar um desafio a si própria. A exemplo do que já fez em Gal canta Caymmi (1976), Aquarela do Brasil (1980), que só trazia composições de Ari Barroso, e de Mina d’água do meu canto (1995), no qual pinçou jóias de Chico Buarque e Caetano Veloso, quer intensificar ainda mais este formato conceitual no disco. "Uma grande cantora tem a obrigação de gravar os grandes compositores", afirma, alinhando entre os escolhidos para futuros trabalhos Paulinho da Viola, Assis Valente e o americano Cole Porter.

No caso de Jobim, conta que se pudesse gravaria dez CDs duplos. "Ficou de fora Inútil paisagem, por exemplo, mas não vou falar do que eu queria cantar, e sim do que estou cantando." Familiarizada com a extensa obra do compositor falecido em 1994, visitada esporadicamente em sua carreira de 32 anos, Gal levou dois meses e oito encontros com o diretor José Possi Neto para fechar o repertório do espetáculo. Entre outras, compõem a lista pomposa Chega de saudade, Corcovado, Wave, A felicidade e Se todos fossem iguais a você. Além da escolha emocional, como faz questão de frisar, o critério se deu pela cronologia, cobrindo os anos pré-bossa nova, o período áureo do movimento e os trabalhos mais recentes do maestro. Sob a projeção de uma lua cheia no cenário, Gal inicia sua homenagem a Tom Jobim com Fotografia, que a remete aos tempos da efervescente noite carioca, quando se ouvia nas boates o som revolucionário a que agora presta tributo. "Com raras exceções, o que vende hoje no Brasil é uma música de baixa qualidade. Não ouço mais rádio", lamenta.

 

Mutante – Não se deve pensar, no entanto, que a cantora de "espírito, temperamento e personalidade mutante", ex-musa incendiária do tropicalismo, esteja empunhando a bandeira elitista. "O brasileiro pode gostar de músicas vulgares e popularescas, mas pode gostar também de Antônio Carlos Jobim, que é o mais simples e sofisticado dos compositores. Isto infelizmente não está acontecendo devido a uma ditadura das rádios, que só tocam o que é ruim." É uma pena, porque ouvi-la cantando Chovendo na roseira, Lígia, Janelas abertas, Por causa de você ou Anos dourados já valeria o ingresso do show em cartaz em São Paulo até dia 19 e que na sequência vai para Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Nordeste e Rio de Janeiro, com previsão para novembro. Autodidata, ela lembra como aprendeu na juventude a emitir corretamente a voz, se fechando no banheiro para cantar sucessos da bossa nova com uma panela à altura do ouvido que servia de retorno sonoro. Hoje, porém, Gal Costa é adepta de uma receita bem mais pessoal. "Quando se está cantando, é preciso acariciar as palavras, dar luz, alma, corpo e vida a elas." Tom Jobim sabia.