As importantes obras de arte colecionadas por Lily Marinho ao longo de 70 anos estão indo para longe de sua dona. Quadros de Portinari, Fachinetti, Van Dongen, além de jóias e peças representativas da arte brasileira dos últimos três séculos, foram empacotados e retirados das fazendas do Vale do Paraíba. Perto de completar 87 anos – o aniversário é dia 10 –, a viúva de Roberto Marinho resolveu levar ao martelo dois mil itens, com valor total estimado em R$ 25 milhões. A iniciativa, diz ela, servirá para manter a harmonia familiar depois de sua morte. “Já soube de muitos parentes que se desentenderam por causa da divisão de bens e quero evitar isso”, justificou- se aos amigos. Os leilões serão realizados entre os dias 8 e 17 no Rio de Janeiro e nas representações da Sotheby’s de Nova York e Genebra. Dona Lily enfrenta esse processo com desapego incomum. “Tudo isso com o que convivi e vivi está longe de mim agora”, desabafou, referindo- se ao fato de pouco ter visitado suas fazendas depois da morte do criador da Rede Globo.

LEANDRO PIMENTEL/AG. ISTOÉ

DESAPEGO Com a elegância de sempre, dona Lily Marinho se despede de símbolos de um passado feliz

 

A principal preocupação de dona Lily tem a ver com João Baptista, o filho adotivo e seu único herdeiro. Pouco depois do acidente automobilístico que em 1966 matou Horacinho, filho de seu primeiro casamento com o empresário e jornalista Horácio de Carvalho, ela resolveu adotar João por intervenção de Sarah Kubitschek, mulher de JK. Hoje, ele tem quatro filhos. “João Baptista passa a maior parte do tempo no Exterior, não tem paciência para administração de bens”, conta Romaric Büel, que conheceu Lily quando era adido cultural da França no Rio, há 15 anos, e está ajudando a organizar os leilões. Os negócios da família não são mesmo o forte do filho. Dona Lily montou para ele um estúdio de gravação e uma produtora cinematográfica, empresas que não vingaram. Gerenciar fazendas também nunca lhe despertou interesse. A incerteza quanto ao seu futuro inspirou a realização dos leilões. O valor apurado será administrado por um trust que vai lhe garantir uma boa vida. O instinto maternal se sobrepôs de tal forma ao conhecido perfil de amante e profunda conhecedora de arte que, ao fim do levantamento do acervo a ser leiloado, o interesse de dona Lily era meramente pecuniário: “Quanto deu o total?”, perguntou apenas.

As pessoas que acompanham de perto a organização dos leilões elogiam a atitude. “É uma demonstração de sabedoria”, diz o amigo Büel. “Sua família pode não ter o mesmo gosto pela arte e essa iniciativa diminui a possibilidade de atrito entre os netos, evita problemas que todos nós identificamos”. Responsável pelos leilões no Brasil, Soraia Cals concorda que dona Lily sabia exatamente o que estava fazendo. “Ela se mostrou muito determinada”, afirma. É preciso realmente estar muito segura para levar a leilão tantas preciosidades. Há peças da Companhia das Índias, mobílias do século XVIII e vários outros destaques. O vaso de flores de Portinari e um quadro de Antonio Bandeira estão avaliados em R$ 650 mil. Esses lotes serão leiloados no Rio, entre os dias 13 e 17 de maio. São 908 peças cujos valores somados alcançam R$ 10 milhões. Já a Sotheby’s vai leiloar os artigos de maior valor, tanto financeiro quanto sentimental. No dia 15, em Genebra, serão oferecidos 64 lotes de jóias. Dia 8, em Nova York, vai a leilão um quadro do pintor holandês Kees van Dongen. Somente essas peças estão avaliadas em cerca de R$ 15 milhões.

Dona Lily explicou a David Bennet, da Sotheby’s, a importância desses objetos. “Todas as minhas jóias me foram dadas pelos meus dois maridos. Fui casada com Horácio (de Carvalho) por 45 anos e, alguns anos depois que fiquei viúva, casei-me com Roberto. Então seu significado é o amor que sentiam por mim”, disse. A peça mais cara é o quadro em que Van Dongen pintou Lily, em 1946. Seu valor está estimado entre US$ 500 mil e US$ 700 mil. Ao avistá-la, em Paris, o artista pediu ao seu marido, Horácio, permissão para retratá-la. “Ele concordou com a condição de que depois pudesse comprar o retrato”, recorda. “Terminou em cinco dias e o chamou de Monique au chapeau, que se refere ao meu segundo nome, Lily Monique.” Os lances por essa pintura, considerada uma das melhores do pintor holandês, devem atingir valores estratosféricos.

Paisagem
Fazenda Veneza
, de Fachinetti, foi pintado em meados do século XIX R$ 160 mil

 

Apesar de toda a movimentação em torno de seu acervo, Lily mantém a tranqüilidade que sempre foi sua marca. Afinal, está acostumada a grandes emoções. Filha de mãe francesa e pai inglês, nasceu em Colônia, na Alemanha. Foi criada na França, onde ganhou o concurso de Miss Paris em 1938. Ficou noiva do jornalista e empresário brasileiro Horácio de Carvalho aos 17 anos e mudouse para o Rio de Janeiro em 1939. Viveu 45 anos com Horácio. Seu segundo casamento, com Roberto Marinho, aconteceu em 1991. “A primeira vez que o vi, não me impressionou. Não era o meu tipo, com aquele bigodinho”, confessou ela recentemente. Depois, admite, apaixonou-se completamente. Após a morte de Marinho, em 2003, continuou vivendo na mansão localizada no bairro do Cosme Velho, zona sul do Rio. Os herdeiros da Globo dão a Lily o direito de viver lá o tempo que quiser. É para manter essa aparente tranqüilidade familiar que ela vai levar seu tesouro a leilão. “Não tenho mais tanto tempo de vida, então quero facilitar as coisas para meu filho”, explicou ela a alguns amigos.

ALGUMAS PRECIOSIDADES

Musa
Encantado com a beleza de Lily, Van Dongen fez seu retrato, Monique au chapeau
US$ 500 mil

Formas
Mulher sentada, de Bruno Giorgi, brasileiro que produziu entre os anos 40 e 90
R$ 80 mil

Abstrato
Os quadros de Antonio Bandeira são comparados a Portinari e Di Cavalcanti
R$ 650 mil

Beleza
Quadro Vaso com flores, de Portinari, destaque no leilão do Rio
R$ 650 mil

Barroco
No acervo há várias obras do século XVIII e XIX, como essa imagem sacra
R$ 8 mil

Retrato
O russo Dimitri Maillovich fez Quadro azul com Lily tendo ao fundo o Rio como paisagem
R$ 26 mil

Luxo
Colar de brilhantes que faz parte da coleção de jóias de Lily
US$ 200 mil

História
Sopeira que pertenceu ao Barão de Itambi, que viveu entre 1806 e 1877
R$ 80 mil