Na tarde de 7 de setembro, com uma vara de pescar, Alzira de Jesus, 61 anos, sai de Minas Gerais e entra na Bahia atravessando a pé o largo rio Verde Pequeno. O cenário, prato cheio para Salvador Dalí ou qualquer mestre de absurdos, parece miragem no sol de arrebentar mamonas da cidade de Espinosa, norte de Minas. O leito do rio está sem um pingo d’água. É pedra, areia e nada mais. "Uai sô, quem sabe Deus num põe um piauzim pra nóis n’alguma pocinha que sobrou?", tenta explicar-se. O marido, Jesulino Oliveira, 60 anos, com uma foice, procura capim seco para cortar e dar de comer ao jumento que cria junto ao barraco de tijolo cru, derretido pelas chuvas de dezembro e reconstruído às margens do finado rio. Antes de morar com Alzira, Jesulino teve 20 filhos com duas mulheres. Dois morreram e 18 emigraram.

Alzira e Jesulino sabem que é feriado. Mas não alteraram em nada a rotina de desempregados crônicos, agravada pelo fato de os governos federal e estadual, em guerra, não terem renovado no início do ano o programa de frentes de trabalho. Até 1998, Jesulino integrou as frentes, ganhando R$ 80 ao mês. De lá para cá, eles só comem arroz e, às vezes, feijão. São o retrato nu e cru de mais um estrago da seca, que há uma década começou a transformar em deserto o sertão onde Minas se mistura com a Bahia.

Prefeitos de 182 municípios do terceiro Estado mais rico do País decretaram estado de calamidade. Estão aí as 86 cidades do Norte e as 54 do Vale do Jequitinhonha. No Norte, secaram 185 rios e 233 córregos. Outros quase 400 sumiram no famoso vale da miséria. A terra arrasada pela estiagem, que começou em fevereiro, faz definhar o gado, leva fazendeiros à falência e amedronta com a fome os trabalhadores rurais. Escolas são fechadas e pessoas caminham dezenas de quilômetros em busca de um poço artesiano. A paixão nacional por obras inacabadas ostenta no Norte cerca de mil poços perfurados em 1998 e desativados por falta de equipamentos. No Avança Brasil, o plano federal de R$ 1 trilhão em obras, o combate à seca não tem destaque em Minas, mas R$ 469 milhões estão previstos para as rodovias do Estado.

Enquanto o presidente e o governador assistiam às paradas militares em Brasília e em Belo Horizonte, nenhum festejo marcou o 7 de Setembro no sertão mineiro. "Diz eles que é Dia da Independência, né?", arrisca Alzira, analfabeta. "Não vou dizer que sei o que é porque eu não minto, viu, moço?" O marido passa perto: "Independência foi o Tiradentes, não foi? Só sei isso." E se Alzira pudesse ir à capital pedir algo ao presidente cujo nome ignora? "Ah, eu pedia bacalhau. Diz que é um peixe que vem numa caixa e todo ano eu pelejo pra comprar e não dá."

A mesma indiferença cívica marcou o dia em Santo Antônio, vilarejo emoldurado por montanhas de pedras e árvores secas a sete quilômetros de Espinosa. Na comunidade de 800 pessoas, as chamadas "viúvas de marido vivo" chefiam mais da metade das casas. Uma delas é Maristela Ferreira, 18 anos. Em março, ela se casou com Juraci da Silva, 24, e em abril já era "viúva". Expulso pelo desemprego, Juraci foi cortar cana em São Paulo e só volta em novembro. Manda para casa R$ 60 por mês. Jussara, a filha que tiveram antes do casamento, tem dois anos. A rala memória que tem do pai é alimentada pelo retrato que ele mandou pelo correio. No Dia da Independência, Maristela acordou às 4h para disputar com as "viúvas" um lugar na fila do poço da prefeitura. Voltou ao meio-dia. Ela acha que o feriado comemora o "Descobrimento do Brasil", mas não arrisca dizer o que entende por Pátria. "Ai, que pergunta difícil. Sei não…"

Salário dividido – Não é apenas em Espinosa que o feito de dom Pedro I passa despercebido, sem bandeira ou hino. Em Rio Pardo de Minas, a prefeitura não programa nenhum evento há cinco anos porque nenhum estudante quer integrar a fanfarra. Nem há recursos para festas. A cidade tem 28 mil habitantes e a prefeitura, paradeiro dos desesperados, mil funcionários. Para dar conta do recado, dividiu por dois o salário de cada um. "Ninguém planta mais e a economia gira em torno só da prefeitura", diz o prefeito Orlando Afonso (PTB), que ri quando alguém fala em reforma administrativa.

A mesma reação tem o prefeito de Riacho dos Machados, Antônio do Carmo (PMDB), que na véspera do feriado ficou longe da prefeitura para fugir do assédio dos desempregados. Ele não participou do protesto da maioria dos colegas, que passaram a semana de portas fechadas. O município arrecadou R$ 120 mil em agosto, tem 11 mil habitantes e 309 funcionários. "É perigoso alguém morrer de sofrimento se eu dispensar", diz o prefeito, que atribui à refrega de Itamar Franco com Fernando Henrique Cardoso a calamidade deste ano. "Essa briga só traz miséria." O sufoco levou o prefeito de Mato Verde, padre João Gonçalves Dias, a renunciar no começo de agosto. O governador não pagou em janeiro os três meses atrasados da contrapartida de R$ 16 aos R$ 64 que a União manda para cada pessoa das frentes de trabalho. A verba federal foi cortada. No fim de agosto, a Sudene anunciou o reinício das frentes, mas até agora nada foi feito. Pelo contrário. "O governo federal mandava 1.082 cestas com 25 quilos de alimento. Agora mandou cinco quilos de feijão", cobra o prefeito.

 

Chifrudo – Uma das afetadas foi Jordelina Oliveira, 82 anos, da comunidade de Córregos. Enquanto alimenta com um pedaço de cana as três vacas e três bezerras que lhe restam, ela diz que "a Independência foi bom porque tudo que Deus manda é bom". O córrego sem nome no fundo da propriedade secou e a cisterna da família, também. A lavoura de subsistência que ela, as duas filhas e o neto tocavam foi perdida em fevereiro. A água é buscada num poço a dois quilômetros. "Nóis num sabe que dia Deus vai mandar chuva. Eu só rezo pra nóis não morrer de fome nem os animalzim." Jordelina acha que Deus não manda chuva "porque nóis deve de ter feito muita coisa ruim e num tá merecendo". Ela não conhece as causas das mortes de três filhos que já perdeu. O último, 35 anos, morreu há um mês, numa região onde doença de Chagas, tuberculose e lepra ainda matam.

Também reza para espantar desgraças o vizinho Cristovino Ferreira, 42 anos e seis filhos. "Quando criança, eu nem atravessava o corgo, de baita que era. Agora é esse trem seco que ocês vê", recorda. Cristovino diz que a falta de chuva é obra de Deus, mas a morte dos rios é do homem, que desmata e assoreia os cursos d’água, encarnado que está pelo "coisa ruim". Outros possuídos pelo "chifrudo" são os plantadores de eucaliptos, que secam as nascentes com raízes gigantescas e gulosas. A crença de que o "maligno" encarna no que entorta a natureza faria de Cristovino personagem de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas. "O Guimarães Rosa falava que nosso sertão tinha água e lugar bonito. Só queria ver a cara dele se aparecesse aqui hoje", diz Cristovino.

 

Pedra e pó – Mais surpreso ficaria o escritor mineiro se vencesse os sete quilômetros da estrada de pedra e pó que separam a vila Córrego do Gerais da cidade de Rubelita, no Vale do Jequitinhonha. Montado na mula Amarelinha, que parece menor do que ele, o pequeno proprietário José Loyola Sobrinho, 48 anos, visita os estragos em seus 132 hectares. Este ano ele perdeu 33 de 72 cabeças de gado. "Tem dez anos que o trem tá feio, , mas igual a esse nunca teve. As vaca num dá um pinguim de leite." Pelos cálculos da Emater, a produção leiteira em julho foi 55% menor do que o esperado no Norte. As perdas da safra agrícola são estimadas em R$ 40,7 milhões.

Com o sumiço das águas do Córrego do Gerais, Verônica de Jesus, 18 anos, sobe um quilômetro em uma montanha íngreme, entre cactos e juremas espinhentas, todos os dias, para buscar água de beber e se banhar no poço de um fazendeiro. Ainda leva as filhas Eva Aparecida, quatro anos, e Francisca, um ano e três meses. O marido, Evelson, acordou em 7 de setembro às 2h para chegar às 7h num fazenda onde dá graças a Deus por ganhar R$ 4 por dia roçando o pasto morto. "Eles diz que é Dia da Independência, mas eu num sei", desconfia a mineira, enquanto monta com tijolo artesanal um fogão na casa feita com o dinheiro da frente de trabalho do ano passado. No feriado, ela cozinhou arroz, feijão e uma sobra de macarrão. Os frangos morreram todos e só alguns pintinhos ciscam em volta da casa. "Carne? Faz tempo que nóis num vê esse trem aqui não, moço", ri Verônica, que não sabe o nome do presidente da República nem qualquer trecho do Hino Nacional. É difícil acreditar, mas ela tampouco conhece as cores da bandeira do Brasil, cujo uso as Forças Armadas tanto se esforçam para controlar. O significado da palavra Pátria? "Sei não, moço", gargalha, com jeito de quem desconfia estar ouvindo um palavrão.