O barco da Funai sobe o rio Ituí. Corta o sudoeste da Floresta Amazônica, nas fronteiras com o Peru e a Colômbia. A viagem já dura cinco horas. Além da equipe de ISTOÉ, fazem parte da comitiva repórteres da revista alemã Der Spiegel e do Discovery Channel. Uma família de botos cor-de-rosa faz piruetas silenciosas na superfície da água. As margens do rio estão cheias de borboletas coloridas. À próxima curva, uma surpresa. Dois indiozinhos pelados tentam esconder-se numa canoa nas moitas de um igarapé. Mais adiante, quatro adultos nos observam. E, mais à frente, outros dois. Em vez de desaparecerem no meio da selva, disparam numa corrida desenfreada pela beira do rio, os corpos pintados de urucum, e conseguem ultrapassar o barco. Reúnem-se ao restante da tribo de apenas 18 integrantes e nos aguardam. Falam alto, apontam, cruzam os braços… Uma menina traz no ombro um filhote de macaco que não pára de gritar. Parece mais assustado que os índios. Eles têm a nuca raspada e apenas uma franja preta e grossa lhes cobre a cabeça. Três mulheres carregam bebês presos ao corpo com uma tira de casca de árvore. Os homens têm a ponta do pênis amarrada e suspensa por uma cordinha em volta do quadril. "Áne?" Querem saber quem somos. Mulher branca também tem xuma (seio)? Riem muito e, apesar de desconfiados, nos recebem pacificamente. Da mesma forma como os tupiniquins receberam Pedro Álvares Cabral e sua armada de 13 naus e cerca de 1.500 homens no litoral baiano.

Quinhentos anos após o descobrimento, o Brasil abriga brasileiros que ainda não foram descobertos. Mantiveram-se afastados de todas as transformações que aconteceram no País e no mundo e não têm nenhuma relação com outros grupos indígenas. Às portas do ano 2000, vivem de caça, pesca (alguns têm pequenas lavouras), não falam português, nunca viram televisão, carro ou bicicleta. O único contato com a tecnologia é o ronco dos aviões e os barcos da Funai. Dos 210 povos indígenas remanescentes no Brasil, 55 vivem isolados da civilização desde a época da colonização. Sabe-se de sua existência através dos vestígios que deixam na mata, de informações de comunidades ribeirinhas e de imagens aéreas de suas malocas.

O grupo que a equipe de ISTOÉ encontrou à margem do rio Ituí pertence à tribo dos korubos, encafuados a uma distância de 100 quilômetros dali. Num sobrevôo pela região, foram vistas três clareiras e ocas com capacidade de abrigar até 40 pessoas. Acredita-se que os korubos sejam em torno de 300. Os que contatamos deixaram a aldeia há cerca de oito anos e não podem voltar. O motivo é bem humano: Xixu, um índio risonho e de peito empinado, teria roubado Maiá de outro homem e fugido da tribo levando alguns parentes. Hoje, há sete mulheres (três adultas, uma adolescente, uma criança e dois bebês) e 11 homens (seis adultos, um adolescente, três crianças e um bebê) no grupo. Para chegar até eles, foram três dias de longa espera num sobrado flutuante da Funai, na confluência dos rios Ituí e Itacoaí. Os índios costumam aparecer na outra margem do rio, em frente ao sobrado. Mas dessa vez não apareceram. No quarto dia de espera, quarta-feira 25 de agosto, saímos à cata deles. Na classificação da Funai, os korubos são índios semicontatados. O primeiro contato foi feito há três anos. Não se sabe nada do universo mítico, das regras de convivência ou relações de parentesco dos korubos dissidentes. Eles não têm pajé nem caciques e há a suspeita de que, em função do isolamento do resto da tribo, mantenham relações incestuosas entre si.

Veneno – Os korubos nos levam para seu acampamento, a poucos metros do rio, e nos mostram a caça do jantar: uma preguiça e um macaco. Foram mortos com zarabatanas – finos troncos de árvore, ocos por dentro, de até três metros de comprimento. Com um sopro forte em uma das extremidades, os índios lançam no alvo pequenas flechas contendo veneno de cipó. Para conseguir entender o que dizem, os técnicos da Funai contam com a ajuda dos matis, uma tribo aculturada do sul da Amazônia cujo dialeto, o pano, mais se aproxima da língua dos korubos. Maiá, uma das mandonas do grupo, quer saber por que há mulheres na comitiva da Funai sem marido. Diz que é ruim ficar sem banê (companheiro).

Há quatro palhoças frágeis, de folha de palmeira e coqueiro. Dentro delas, pouca coisa: fogueiras e redes feitas com palha de árvore. O fogo é obtido esfregando-se dois tocos de cedro em chumaços de algodão do mato. Os korubos não se assustam com as máquinas fotográficas. Gostaram mesmo foi da tesoura que trouxemos. Devidamente instruída, Maiá experimenta cortar a franja de um indiozinho de um ano. Acerta de primeira e cai na gargalhada. Os índios conversam muito entre eles. Contam que recentemente mudaram de acampamento por causa dos carapanaí (mosquitos), que estão plantando milho e que têm muita, muita preguiça. Nos oferecem milho assado e buriti, uma fruta de sementes amargas parecida com a manga. Xixu pega os funcionários da Funai pelas mãos para dançar e cantar. Com a face lívida, como se entrasse em transe, grita: "Rê-Rê tupi choe moxê, osmaiê…" É um choro.

Apesar de mostrarem-se receptivos e afetuosos, os korubos são perigosos. Em agosto de 1997, mataram a golpes de cacete, sem motivo aparente, o funcionário da Funai Raimundo Batista Magalhães, o Sobral. "Não relaxamos nunca num contato. A gente diz uma coisa e os índios podem interpretar outra. É preciso ter muito cuidado", observa o sertanista Rieli Franciscato, 35 anos. "Tenho medo deles. Quando tinha sete anos, invadiram minha casa e me deram duas cacetadas na testa e na nuca. Meus pais estavam na roça. Desmaiei e quando acordei não conseguia ver nada de tanto sangue no rosto", lembra Neuza Juvenal da Silva, 54 anos, dona de uma venda à beira do rio. Os korubos são tão primitivos que nem usam flechas. Suas armas são bordunas amarradas com uma corda ao tornozelo. Graças a elas, ganharam o apelido de caceteiros. Nos últimos 23 anos, teriam matado a bordunadas 24 pessoas, entre elas uma criança filha de seringueiros, seis funcionários da Funai e dois da Petrobras.

"Foi exatamente por causa dos confrontos que esses índios se isolaram. Eles não saíram de casa para matar. A luta aconteceu em suas terras. Se estivesse na pele deles, faria pior. Matava, cortava o saco e colocava na boca", esbraveja o sertanista e presidente do Departamento de Índios Isolados da Funai, Sidney Possuelo. Através de sete frentes de trabalhos espalhadas pelo País – a maior parte delas na Amazônia Legal –, o Departamento tenta localizar geograficamente os índios isolados, delimitar seu território e oferecer proteção. Não é fácil. Naquelas bandas, índio ainda é sinônimo de entrave ao desenvolvimento. "Dão muita terra para pouco índio e o branco não tem onde criar seus filhos", reclama Arlindo de Souza Palmeira, 37 anos, marido de Neuza. Para proteger os korubos e outros quatro grupos de índios selvagens que sobrevivem no sudoeste da Amazônia, a Funai delimitou uma área de 8.337 milhões de hectares, do tamanho de Portugal, chamada Vale do Javari. A demarcação deverá ocorrer a partir de outubro.

 

Invasão – Segundo Possuelo, cidades próximas como Atalaia do Norte e Benjamim Constant não querem a demarcação. "Associados aos políticos locais, madeireiros, pescadores e caçadores tentam enfraquecer nosso sistema de vigilância promovendo invasões. Tenho um processo na Justiça contra as prefeituras locais por terem retirado as placas que colocamos na região", conta. Instalado num sobrado flutuante na confluência dos rios Ituí e Itacoaí, a dois dias de barco da cidade de Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, Possuelo age com poder de polícia. Interdita o acesso dos barcos à area indígena, vai atrás de caçadores e madeireiros e ajuda a Polícia Federal a localizar pistas de pouso e decolagem de narcotraficantes colombianos.

Todo esse esforço é para continuar mantendo os índios selvagens isolados da civilização. "Há muitos prejuízos no contato físico e cultural. Vantagem para eles é viver a sua vida bem longe. Os índios aculturados foram submetidos a um mundo que não lhes pertence e não lhes dá espaço", diz Possuelo. No caso dos korubos, segundo ele, a aproximação era inevitável. "Se não fizéssemos contato, mais cedo ou mais tarde iriam nos atacar." Ao deixarmos a aldeia, Xixu corre à nossa frente e entra no barco. Mexe em tudo e atira nossos objetos para os índios que estão na margem do rio. Nada a fazer. Depois da curiosidade momentânea, voltam para o mundo que lhes pertence: a floresta.

 

Espécie em extinção

Vetido numa roupa de safári, um chapéu rasgado cobrindo a careca, Sidney Possuelo parece sair daqueles filmes de aventura rodados na Àfrica. Assim como os índios, pertence a uma espécie em extinção: a dos grandes sertanistas que desbravam a selva e se confundem com ela, movidos por uma paixão absolutamente incondicional pelos índios. Aos 59 anos, 30 de floresta, Possuelo já matou três onças e pegou "o raio da malária" 37 vezes. É um tipo nervoso e impaciente com os que estão à sua volta. Entre os índios, vira um doce de pessoa. Possuelo fez escola com o sertanista Orlando Villas-Boas. "Fui procurá-lo em busca de aventura. Não tinha nenhum amor pelos índios. Hoje luto por eles porque acredito que ninguém pode ser vilipendiado em seus direitos." O sertanista já promoveu sete contatos com tribos indígenas isoladas e numa ocasião foi refém de índios durante 23 dias. "Na década de 80, os índios do Xingu brigavam com o governo porque tinham perdido a margem direita de um rio. Me mandaram lá levar o ato de incorporação de terra e os índios me pegaram. Foi divertido", lembra. Possuelo foi presidente da Funai de 1991 a 1993 e protagonizou outra aventura que merece registro. Há cerca de três anos, um grupo de índios isolados cercou a frente de contato da Funai próxima à cidade de Feijó, no Acre. Apavorados com os índios entocados na mata, os funcionários pediram orientação pelo rádio a Possuelo. O sertanista ordenou que se abrisse uma clareira no meio da selva e ali pousou poucas horas depois de helicóptero para resgatar os 22 funcionários. "Estávamos ali para demarcar suas terras. Mas como poderíamos explicar isso aos índios? Não tivemos até agora nenhum contato com aquela tribo. Para eles, os brancos são ferozes e são todos parentes", observa. Sua trajetória em defesa dos índios tem tantas aventuras que vai virar documentário do Discovery Channel. No texto de apresentação do programa, Possuelo é definido como uma "mistura de Robin Hood, Jesus Cristo e Che Guevara".