Foi preciso a morte do juiz Leopoldino Marques do Amaral para quebrar o marasmo instalado na CPI do Judiciário. Há mais de um mês a Comissão recebeu graves denúncias contra os desembargadores da Justiça de Mato Grosso capazes de fazer corar o juiz paulista Nicolau dos Santos Netto, conhecido pelas falcatruas no Tribunal do Trabalho de São Paulo. Havia de tudo um pouco no caso do Centro-Oeste: acusações de assédio sexual, venda de sentenças, nepotismo, fraude de concurso público e aposentadorias irregulares. O material foi apresentado pelo juiz Leopoldino Marques do Amaral, da Vara de Família de Cuiabá. Para evitar que suas denúncias caíssem no esquecimento, Leopoldino as protocolou na Procuradoria Geral da República, endereçando ao procurador-geral, Geraldo Brindeiro, o mesmo calhamaço levado à CPI. Tudo em vão. Nos dois casos, os relatos do juiz ficaram dormitando nos escaninhos. Enquanto isso, Leopoldino insistia, obstinado, na busca de novas denúncias, costurando o destino trágico que ele mesmo previra.

"Tenho de admitir. Se esse juiz não tivesse morrido, demoraríamos mais para examinar o caso dele", confessa o presidente da CPI do Judiciário, senador Rames Tebet (PMDB-MS). Tebet disse que tomou conhecimento do caso em agosto e o pouco que fez certamente não ajudou o juiz Leopoldino. Pelo contrário. Recebeu em seu gabinete, em Brasília, um dos principais acusados, o presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Wandyr Clait Duarte, para ouvir os desmentidos e ser informado sobre as denúncias contra o juiz assassinado. Desde julho, o tribunal de Mato Grosso investigava o envolvimento do juiz no desvio de mais de R$ 200 mil em depósitos judiciais e falsificação de alvarás na Vara de Família. Agora, a CPI deve entrar no assunto. O que o senador não revela é que, na verdade, a CPI já havia decidido que não iria começar nenhum caso novo.

 

Pistolagem – Na terça-feira 7, o corpo do juiz foi encontrado, carbonizado, à beira de uma estrada de terra em Concepción, no Paraguai, a 350 quilômetros da divisa com Mato Grosso do Sul. Leopoldino foi executado com dois tiros à queima-roupa. Um na nuca e outro no ouvido. O juiz investigava nova e explosiva denúncia: o possível envolvimento de magistrados de Mato Grosso com o narcotráfico. Suspeito da execução do juiz, o pistoleiro Maurício Marques Niveiro, ex-sargento da PM de Mato Grosso do Sul, foi preso na quinta-feira na lanchonete da rodoviária de Ponta Porã, na divisa com o Paraguai. Maurício responde a vários crimes, entre eles cinco homicídios. Testemunhas disseram que o ex-policial, preso com uma pistola 3.80, de fabricação tcheca, esteve em Cerro Corá, onde foi encontrado o carro do juiz. Segundo investigações preliminares, o ex-PM está ligado ao conhecido sindicato da pistolagem. Os membros dessa organização costumam agir dos dois lados (Brasil e Paraguai). A metodologia do crime obedece aos padrões do sindicato, ou seja: se a vítima for brasileira, o corpo é deixado no Paraguai e vice-versa. O depoimento de Maurício foi tomado durante toda a sexta-feira 10. Ele negou qualquer envolvimento com o crime. A PF está certa da participação de mais pessoas na execução. O ex-sargento, antes de ser preso, deixou um homem na rodoviária de Ponta Porã. A polícia divulgou também o retrato falado do homem que, segundo testemunhas, teria rondado o Hotel Beira-Rio, em Várzea Grande, onde o juiz estava hospedado. De acordo com a descrição, o homem identificado pela polícia seria Pedro da Silva Pinheiro.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu na quarta-feira 8 mais uma representação por abuso de poder contra desembargadores de Mato Grosso feitas por Leopoldino. Uma outra acusação feita anteriormente ao STJ liga o presidente Wandyr Clait Duarte e outros magistrados ao narcotráfico. Wandyr já foi oficiado a prestar esclarecimentos. Na representação, que a burocracia fez chegar após a sua morte, o juiz acusa o presidente, o vice, Munir Seguri, e o corregedor Paulo Inácio Dias Lessa de terem, devido às denúncias, tentado intimidá-lo e coagi-lo. Eles puseram quatro oficiais de justiça e três PMs armados o seguindo dia e noite. Leopoldino informou ainda ao STJ que o alto comando da PM teria explodido o barco de um desembargador que transportava éter e acetona, produtos químicos usados no refino da cocaína. Na mesma denúncia, ele acusava o juiz Geraldo Palmeira e o desembargador Flávio Bertin de usarem aeronave apreendida por tráfico de drogas para fazer uma viagem à Bolívia. Eles, afirmou o juiz na representação, teriam pousado na fazenda do maior traficante boliviano, seguindo dali para Santa Cruz de La Sierra para visitarem uma feira de automóveis. Dias antes de ser assassinado, Leopoldino mergulhou em apurações tenebrosas: as supostas ligações de Bertin com traficantes bolivianos. A CPI do Narcotráfico já pediu a quebra dos sigilos bancário e telefônico do desembargador. Para a PF em Cuiabá, provavelmente foi esta linha de investigação que sentenciou a morte de Leopoldino. "Também vamos entrar nesse caso", adianta o deputado Moroni Torgan (PSDB-CE), relator da CPI do Narcotráfico.

O assassinato também serviu para movimentar a procuradoria. As denúncias estavam paradas na assessoria jurídica de Brindeiro até a última quarta-feira. Com a morte de Leopoldino, o material foi encaminhado a uma subprocuradora para ser investigado. Indignados com o crime, os senadores se mobilizaram para pedir punição e já pensam em prorrogar os trabalhos da CPI. O senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), o idealizador da comissão que investiga o Judiciário, reagiu ao seu estilo. "Eu iria a Mato Grosso e enfrentaria até mesmo os óbices constitucionais, com unhas e dentes. A situação do Judiciário é gravíssima e, se não forem tomadas as providências, teremos a impunidade como lema e a anarquia instalada."

"Se tivesse havido uma investigação séria sobre as denúncias, mesmo as que fizeram contra meu pai, e com conclusões sérias, ele estaria vivo agora", lamenta o filho do juiz, Leopoldo Amaral, 28 anos, que foi a Concepción reconhecer o corpo do pai e trazê-lo de volta a Cuiabá, onde foi enterrado na sexta-feira num clima de revolta generalizada. Contra Wandyr Clait Duarte, há uma peça no dossiê do juiz que, segundo ele, serviria "para qualificar o comportamento dos desembargadores do tribunal". Trata-se de uma fita cassete integrante do processo de separação litigiosa de Wandyr e sua ex-mulher Rosângela Cardoso. Na gravação, o presidente do tribunal, com linguagem chula, confessa a um colega o desapontamento ao saber do casamento de uma funcionária de seu gabinete. "Era uma menina que eu estava cevando (…)", diz ele na fita. Assédio sexual, no entanto, seria um pecadilho diante de outras baixarias atribuídas ao desembargador. O presidente do Tribunal de Justiça foi acusado por Leopoldino de embolsar R$ 300 mil para permitir a transferência da traficante conhecida como Branca de Mato Grosso para a penitenciária da Papuda, em Brasília. A traficante, principal contato de um poderoso cartel colombiano de Cali no Brasil, planejava uma fuga. Wandyr Duarte nega todas as acusações.

 

Gosto do cliente – Outras histórias de corrupção recheiam o arquivo do juiz. Ele denunciou à CPI que no estacionamento do tribunal, a alguns passos dos gabinetes do governador e do secretário de Segurança, dão plantão permanente dois "corretores" especializados em vender sentenças ao gosto dos clientes. O juiz afirmava ter uma testemunha que deu R$ 250 mil a um deles para garantir no tribunal a confirmação de uma sentença favorável. O desembargador beneficiado seria Odiles Freitas de Souza. ISTOÉ não conseguiu localizá-lo. Em outro caso, o juiz acusou o ex-presidente do tribunal Ernani Vieira de Souza de se apossar da herança da própria irmã de criação, Beatriz Rondon, que agora tenta recuperar o dinheiro na Justiça. Vieira de Souza nega a usurpação. Licínio Carpinelli Steffanni teria contratado sua empregada doméstica como auxiliar do tribunal, com um salário de R$ 1 mil. No entanto, o desembargador, que recebe o salário da empregada por procuração, só repassa à moça um salário mínimo. Steffanni não foi encontrado para comentar a acusação.

Nos últimos tempos, o juiz Leopoldino passou a perseguir suspeitas a respeito da existência de uma indústria de indenizações milionárias na Justiça do Estado. Segundo ele, o desembargador Clait Duarte teria sido um dos agraciados. O governo do Estado foi condenado a pagar R$ 578 mil ao presidente do tribunal como reparação moral. Tudo porque Clait emitiu cheques sem fundos entre janeiro e junho de 1995, quando o Estado de Mato Grosso quebrou e atrasou o pagamento dos salários de toda a burocracia. O desembargador aplicou calote na praça e, mesmo assim, conseguiu o direito de abocanhar o equivalente a 29 meses de salário. Um detalhe: há três meses, o Estado perdeu o prazo para recorrer e tornou mais fácil a vida do desembargador, que não terá de brigar pela sua indenização até a última instância, o STJ em Brasília.

 

Família unida – O governo de Mato Grosso não foi o único a levar prejuízo por conta das estranhas decisões tomadas pela Justiça local. A Shell tenta anular no STJ uma sentença relâmpago em que foi condenada a pagar uma indenização superior a R$ 4 milhões a um posto de gasolina, por ter rompido o contrato de fornecimento exclusivo de combustível. Pelos cálculos da multinacional, a indenização representa quatro vezes o valor do posto, que, coincidentemente, pertence a Fernando Bertin, filho do desembargador Flávio Bertin. E mais: o posto ostentava um cliente invejável: o próprio tribunal de Mato Grosso. Leopoldino denunciou à CPI que o posto da família Bertin forneceu por anos a fio o combustível que movia carros de desembargadores – particulares e oficiais – a título de "auxílio transporte".

Nos meios especializados, as decisões esdrúxulas da Justiça de Mato Grosso já são conhecidas. No ano passado, diretores da Shell e das cervejarias Brahma e Antarctica chegaram a procurar o governador Dante de Oliveira e ameaçaram retirar os negócios do Estado. "A coisa chegou a tal ponto que as empresas perderam a segurança na Justiça", diz o advogado Sérgio Bermudes, dono de uma das maiores bancas do Rio de Janeiro, que testemunhou a reunião. O governador Dante de Oliveira é contra a intervenção no Judiciário do Estado, que está sendo articulada pela oposição. "Se isso acontecer agora, no calor das investigações, colocarão em dúvida a honorabilidade de todos os desembargadores. Precisamos apurar o assassinato e punir os culpados", reagiu.

Colaborou Ana Carvalho (SP)

 

"Sou exemplo para os demais"

A determinação do juiz Leopoldino Marques do Amaral era maior que o medo de morrer. Aparentemente tranquilo, de fala pausada, o juiz chegou admitir a ISTOÉ – que vinha investigando as denúncias apresentadas por ele – que corria risco de vida: "Vou adiante. Não tem mais volta." ISTOÉ conversou com ele pelo menos quatro vezes. Uma delas foi na redação da revista, em Brasília. Leopoldino, que não perdia o bom humor, disse que pretendia se aposentar e, por isso, se sentia mais seguro para fazer as denúncias. "Eles não poderão me perseguir, me tirar o cargo." Leia a seguir a última entrevista do juiz que teve a coragem de desafiar o pacto de silêncio de um dos poderes mais fechados do País.

ISTOÉ – Por que o sr. resolveu fazer estas denúncias?
Leopoldino Marques do Amaral – Não é de hoje que brigo com parte do Judiciário de Mato Grosso. São dez anos de crítica. Sou o juiz mais antigo do Estado, teria direito à promoção, mas provavelmente serei rejeitado, pois a maioria dos desembargadores é composta por inimigos meus. Já fui processado administrativamente em decorrência das críticas. Abriram uma sindicância, mas não conseguiram nada.

ISTOÉ – Por que esta inimizade?
Leopoldino – Acho que foi porque eu não entrei no esquema.

ISTOÉ – Mas o sr. foi convidado a entrar?
Leopoldino – Recebi uma vez um bilhete, assinado por um desembargador, em que estava escrito o seguinte: "Ou você entra no ritmo ou sai da dança."

ISTOÉ – Bilhete de quem? Quando?
Leopoldino – De um desembargador. Está assinado, mas não posso entrar em detalhes ainda. Esse bilhete vai fazer parte de outras denúncias que ainda vou fazer. Há um grupo dominador que faz as promoções, dá acesso a desembargadores novos, manipula o Judiciário de Mato Grosso. Os outros juízes perceberam que, se criassem inimizades, se não entrassem no esquema, seriam penalizados como eu fui. Eu sou o exemplo para os demais.

ISTOÉ – Há provas das denúncias de venda de sentenças?
Leopoldino – Isso é público em Cuiabá. Advogados, funcionários, sindicalistas, até cachorros da rua sabem. Um deles, posso provar, fez a corretagem do julgamento de um caso de dissolução de união estável. A sentença foi proferida por mim e dificilmente seria reformada. Eu sei que a confirmação desta decisão custou R$ 250 mil.

ISTOÉ – Sabe como?
Leopoldino – Porque a parte interessada, que pagou, me contou. Coagida, pressionada, fez o acerto. Para pagar a primeira parcela, de R$ 30 mil, teve de pegar emprestado dinheiro com um fazendeiro seu amigo. Tenho conhecimento de outros fatos, mas sem provas, não posso falar.

ISTOÉ – O sr. tem como provar que o presidente do Tribunal, Clait Duarte, vendeu a liberdade de um traficante por R$ 300 mil?
Leopoldino – Foi a ex-mulher dele, Rosângela Cardoso Pereira, que me contou, depois de separada. Ela costuma me dizer o seguinte: "Mal sabe ele que eu sou uma bomba ambulante."

ISTOÉ – E se ela disser que é mentira?
Leopoldino – Eu tenho testemunha da conversa reservada que nós tivemos. Local, data e hora.

ISTOÉ – Mas a testemunha ouviu tudo?
Leopoldino – Não. Quando a conversa começou a entrar em detalhes, a testemunha se afastou. Mas, olha, possivelmente ela sabe de coisa muito mais séria. Não pediu sigilo disso. Quando me procurou, estava fazendo uma denúncia. Eu podia ter gravado, né? Mas seria uma traição.

ISTOÉ – O sr. não pediu para ela assinar um papel, nada?
Leopoldino – Não, mas talvez agora, voltando a Cuiabá, eu faça isso.

ISTOÉ – É que são denúncias graves e como juiz, melhor do que ninguém, o sr. sabe da consequência delas …
Leopoldino – Estou tomando precauções.