O publicitário Enio Mainardi critica o projeto de desarmamento, defende leis rígidas para a compra de armas e prega o combate às causas da violência

Ele é mais eficiente que uma metralhadora giratória. Ao definir um alvo, dispara frases certeiras, com pesado calibre de argumentação. Foi assim que o publicitário Enio Mainardi mandou bala quando percebeu que o projeto de desarmamento proposto pelo governo federal – que proíbe o uso de armas por parte do cidadão comum – caminhava para se tornar realidade, sem uma maior discussão. Espalhou cartazes por São Paulo com a mensagem: "Você é da paz. Eles não. Vamos desarmar os bandidos. Não os cidadãos de bem." Acertou em cheio numa questão polêmica. Em resposta, foi acusado de racismo ao vincular a imagem do jovem negro e pobre à delinquência. O tiro saiu pela culatra. O garoto fotografado é branco e, assim que se livrar desse processo, Mainardi promete entrar com outra ação, agora contra a Procuradoria Geral do Estado. "Quero dar uma lição de democracia. E vou usar todo o dinheiro ganho para montar uma creche para crianças pobres. Não negras, mas brasileiras." Aos 64 anos, 43 de profissão, Mainardi está com a pontaria em dia. Critica da complacência de FHC com a violência ao bom-mocismo da propaganda atual. Perfeito para quem planeja mergulhar no marketing político. Para tanto, a agência que leva seu nome será incorporada pela NewcommBates e Mainardi criará a We – "A tradução é nóis", brinca – para se dedicar a vender, não mais produtos, mas idéias e causas.

ISTOÉ – Ao se opor ao projeto de desarmamento, o sr. tinha consciência de que estava tomando uma posição “politicamente incorreta”?
Enio Mainardi

Todo mundo tem seu inimigo natural: a minhoca tem o pássaro, o pássaro tem o garoto que o estilinga… E eu tenho um inimigo natural: é o politicamente correto. Se existe uma coisa odiosa para mim é as pessoas classificarem qualquer tipo de postura menos convencional como loucura ou polêmica. No Brasil, a palavra "polêmico" é como se fosse um argumento. Quando tacham alguém assim, não estão dizendo: "Esta pessoa está tentando ver uma questão de um ângulo inesperado, criativo." Usam "polêmico" para desvalorizar você, desqualificar o seu raciocínio. Aqui há um ódio provinciano contido contra qualquer pessoa que se arrisque. Só que a cultura, por exemplo, fervilha com os politicamente incorretos, as bolhinhas que sobem do fundo da panela são os politicamente incorretos e aqui estas bolhinhas são todas furadas com agulha. A água não pode ferver.
 

ISTOÉ – Há uma censura coletiva?
Enio Mainardi

Uma cumplicidade dos medíocres. Todos os medíocres têm um "m" na cabeça, que você não consegue ver, mas eles conseguem ver. Eles se identificam perfeitamente, têm uma união de interesses, são alienígenas que estão aí, fazendo da nossa vida um inferno. O politicamente correto é um criminoso em busca de uma oportunidade, é um xiita que vai ao limite imoral e amoral da sua causa, desde que tenha uma justificativa pública que lhe dê cobertura. E ele está disposto a qualquer coisa porque o politicamente correto não tem limites. Ele está animado por este impulso homicida de liquidar com tudo que é diferente dele.
 

ISTOÉ – E o sr. acha que esta proposta de desarmamento do governo é medíocre?
Enio Mainardi

 É absolutamente medíocre. E ela tem três perigos mortais. Primeiro, tentou excluir a discussão, ser um ato institucional de cima para baixo, um AI-5, sem propor um plebiscito para a sociedade, mesmo mexendo com um assunto que é vital: o instituto da legítima defesa. Na hora que fica provada a ineficiência da polícia e você institucionaliza que as pessoas de bem não podem andar armadas para se defender desta violência que está aí, o projeto já fica inviabilizado. Mas a coisa vai mais longe: a proposta não coloca outros aspectos, por exemplo, a responsabilidade do Estado. Em vez de assumir a sua responsabilidade no combate à violência, indo às causas, demagogicamente o projeto desliza para aquilo que é mais fácil e simples de as pessoas aceitarem como sendo uma "providência" do governo. Dizem: "Vamos retirar as armas de todas as pessoas porque arma é igual a crime." Isto é completamente estúpido. Quem comete crime com arma não é cidadão de bem, é o bandido.
 

ISTOÉ – Mas ele não usa a arma que tira do chamado “cidadão de bem”?
Enio Mainardi

 Não. É com a arma clandestina, contrabandeada. Agora, o governo não resolve o problema do contrabando: a porteira com o Paraguai continua aberta, os aviões do Suriname seguem pousando aqui cheios de armas, a fronteira com a Bolívia está aí, escancarada… Aqui, as fábricas exportam os "trinta oitão", que são a maioria absoluta das armas na mão da bandidagem, sem impostos para o Paraguai e eles voltam no mercado paralelo muito mais baratos que nas lojas. O governo nem sequer fiscaliza as armas que estão em mãos das empresas de vigilância – no Rio fecharam 16 empresas de vigilância, sumiram mais de cinco mil revólveres. Meu Deus! Agora, o projeto não mexeu na possibilidade de você comprar arma em loja. Qualquer pessoa pode ir lá e, com ficha policial limpa, comprar uma arma. É um absurdo! Olha, eu não sou Darth Vader, a minha proposta é enrijecer a lei, torná-la mais complicada ainda e cumpri-la. Quer comprar arma? Você vai ter de fazer um exame psicotécnico, um teste de proficiência no uso da arma e na salvaguarda, ou seja, como usá-la sem oferecer perigo aos outros. Eu nem estou falando: "Melhorem a polícia!" Nem comecei a discutir a falta de educação, de assistência básica, de uma clara política carcerária, que faz dos presídios verdadeiras fábricas de bandidos.
 

ISTOÉ – Isto atinge o presidente Fernando Henrique?
Enio Mainardi

 Eu sinto muita pena do Fernando Henrique. O José Gregori (secretário de Direitos Humanos) encaminhou um projeto que vai prejudicar profundamente o presidente porque as pessoas não entendem o que é FonteCindam e os prejuízos que a ajuda aos bancos pode causar na nossa vida ou o que o Itamar Franco tem a ver com Furnas, o povo não entende nem de alta política, nem de alta economia. Mas consegue estabelecer uma regra de três: cada vez mais as pessoas sabem que este projeto de desarmamento é burro porque é demagógico e ineficiente. Então, se isso é burro, demagógico e ineficiente, imaginem-se outras coisas, que horror que podem ter sido. Imagine a desnacionalização da indústria brasileira, a venda das estatais, os leilões de privatização, se não são fajutos. Ou seja, você instila o veneno da desconfiança em todas as posturas do governo, mina a confiança na autoridade institucional.
 

ISTOÉ – Será que a violência tem reflexos na perda de popularidade de FHC?
Enio Mainardi

 A perda de popularidade se deve muito à incompetência em se mexer com a violência. Bota ainda em má posição a Justiça. Faz sobrenadar a ineficiência e a corrupção da polícia e do Judiciário. Aí, de repente, você enxerga que o Estado em geral já está morto há uma semana e fedendo. Eu não vejo, por exemplo, o Fernando Henrique falando nada disso. Por que ele não fala da violência? Será que este é um assunto só de vereador, prefeito e governador? Será que cabe a ele ficar só no seu encastelamento de Brasília, discutindo as reformas institucionais que ele imagina sejam de grande repercussão para o futuro? E ele se esquece de, pelo menos, consolar os parentes das pessoas que hoje estão morrendo.
 

ISTOÉ – O fato é que a questão da segurança está muito próxima dos habitantes das grandes cidades.
Enio Mainardi

 A classe média está sendo tocada. É o professor que é assaltado na esquina e leva um tiro, é o sujeito que depois de jantar não pode dar uma volta no quarteirão, é o filho que saiu para ir ao cinema e o pai não consegue dormir enquanto ele não chega… Enquanto isso, a classe dita baixa já está literalmente no meio do tiroteio. A polícia não entra nas favelas. Aqui, tem o Covas, que é o governador de São Paulo e tem o bandido não sei do que, que é o governador da favela tal. Nós temos uma Colômbia aqui. Tem a Farc do morro tal, a Farc do bairro do não sei onde… Ou seja, se a classe média até agora tratava o assunto de estar armado como uma excentricidade, isso mudou.
 

ISTOÉ – O sr. percebeu uma reação favorável aos seus argumentos?
Enio Mainardi

 Eu sempre gostei de armas, é um hobby, sempre tive porte de arma e salvei a minha vida algumas vezes porque estava armado. E sempre fui classificado como um excêntrico armado. Mas minha avó italiana dizia um provérbio: "A gente aprende a nadar quando a água bate na bunda." A água está batendo na bunda da classe média.
 

ISTOÉ – O sr. pratica tiro com frequência?
Enio Mainardi

 Não. Na verdade estou até perdendo o tesão pelo hobby. Sinceramente, arma não é um hobby legal. É uma solução de segunda categoria contra a violência. O ideal é viver como em Londres. O fato é que quando você anda armado, você está carregando as culpas do Estado porque lhe é dada uma responsabilidade adicional. Ele falhou e você é o policial não pago que cuida de si próprio e do próximo. O Estado nos coloca na pior opção.
 

ISTOÉ – Seu cartaz foi acusado de ser racista. O sr. é racista?
Enio Mainardi

Olha, em se tratando de Brasil, somos todos negros. O problema é que quem se arvora em defender as causas da comunidade negra se considera dono da negritude e os demais são os senhores-de-engenho. Falta perspicácia a esta gente. O vereador que me processou não agiu em favor dos que ele acha que representa. Ele poderia pegar aquele cartaz e dizer: "O Enio tem razão. Negro é isso mesmo. Não tem educação, não tem escola, não tem condição de sobrevivência, precisa pegar uma máquina mesmo. É esta a situação do negro. Aliás, eu queria pedir que sempre que houver um massacre se explique que morreram tantos negros, tantos mulatos porque, assim, a sociedade percebe que quem está morrendo é negro, é preto, é mulato, é a nossa raça." Seria inteligente isso. Porque racismo é exclusão econômica. É ser preto e pobre, é o que institucionalmente coloca os negros na mesma situação em que os pobres brancos estão. Somos todos, como povo brasileiro, vitimados pelo pior racismo do mundo, a falta do básico para dar dignidade ao ser humano.
 

ISTOÉ – A campanha “Sou da paz” é politicamente correta?
Enio Mainardi

 Parece que só eles são da paz. Todos somos. E daí? A campanha tem alguma proposta? Por imitação, se pretende dizer: "Seja você também da paz." Como todas as pessoas do povo são da paz, esta mensagem só pode estar voltada para dois tipos: ou quem é da paz e está perdendo a paciência, ou para os bandidos, o que seria ridículo. É como a história do Gueto de Varsóvia. Os alemães já tinham isolado o gueto e muitos dos judeus proeminentes achavam que era possível ainda dialogar com as autoridades nazistas. Não dá para acreditar que dizendo "eu sou da paz" possamos tocar a bandidagem, que já está insensibilizada para o nosso desespero. Está anestesiada porque recebeu de nós o mesmo tratamento.
 

ISTOÉ – Esta polêmica mostrou o poder da propaganda.
Enio Mainardi

 Pois é, foram só 45 cartazes feitos praticamente de graça. Mas não é graças à força do cartaz, mas à importância do assunto e à maneira crua como foi tratado. Na Europa, a propaganda é usada assim, criticamente. Mas não é para ganhar prêmio, é para fazer propostas claras. Aqui, a maioria dos prêmios distribuídos nos concursos de propaganda é para peças lindíssimas, de alta qualificação visual, mas que não propõem merda nenhuma. Até a propaganda aqui é politicamente correta! Mesmo quando ela quer ser protesto, o faz de maneira educada, graficamente aceitável, é o mesmo clima dos chás beneficentes, das quermesses do pároco do bairro. Tudo muito certinho…

ISTOÉ – Neste mundo globalizado, as agências pequenas ainda podem sobreviver sem o guarda-chuva de uma grande parceira internacional?
Enio Mainardi

A tendência é esta, mas ainda tem espaço para o livre atirador. Só que ele não pode ter opinião, não pode se expor. Porque você sempre vai ferir seus clientes ou clientes potenciais. A publicidade deixou de ser um exercício de profissão e se transformou num negócio comercial. Houve o tempo em que o talento era fundamental, hoje há mais do que isso. Mas, no fundo, isso acontece porque a publicidade não é importante. Se ela fosse realmente vital, não haveria tantas campanhas estapafúrdias. Ainda há muita gordura para queimar, muito dinheiro para se jogar no lixo.
 

ISTOÉ – Por exemplo?
Enio Mainardi

 As campanhas de telefonia são de uma brutal incompetência de marketing. Não ensinaram nada, não houve correspondência entre os fatos e o formato da propaganda. E ninguém foi condenado à morte…