Você usa cartão de crédito? Tem celular? Navega na Internet? Usa um seguro médico privado? O prédio onde mora tem câmeras de vigilância? Faz parte de algum clube de compras que usa cartões com chip embutido? Bem, se você respondeu sim a alguma destas perguntas, sua privacidade está sendo invadida, legal ou ilegalmente, sem que você perceba. É resultado de um movimento mundial, aparentemente sem volta, que restringe cada vez mais nosso direito à privacidade toda vez que as chamadas tecnologias da informação são aperfeiçoadas. Mas, mesmo que tenha dito não a todas as questões, você que é brasileiro está prestes a sofrer a mais perigosa das invasões de privacidade. E o autor desta façanha é ninguém menos que o governo que você próprio sustenta com uma carga pesada de impostos. Já está na mesa do chefe da Casa Civil da Presidência da República a Lei nº 9.454, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 7 de abril de 1997. Ela institui o número único de registro civil de identidade, que vai substituir todos os seus documentos pessoais, sem exceção. Para entrar em vigor, falta apenas ser regulamentada – basicamente, abrir licitação para escolher o fabricante do cartão. O que deve acontecer em breve se o governo tiver como bancar uma operação que custará mais de US$ 900 milhões. A partir de então, os brasileiros poderão jogar fora todos os outros 21 documentos que guardam na gaveta ou no bolso. O número único vai servir como identidade tanto para a Receita Federal quanto para a Previdência. Também como licença para dirigir, documento para abrir conta bancária ou exercer seu direito de voto. Parece interessante e prático, não é mesmo? Só que tal instrumento de identificação obrigatória dá ao Estado e seus gestores um poder extraordinário de controlar e ameaçar a vida de cada cidadão. Nada vai impedir, por exemplo, que o Fisco confronte sua declaração de renda com sua ficha médica ou conta de cartão de crédito, ou que uma companhia de seguros avalie seu risco pessoal com seu histórico médico. Tudo estará vinculado a um número só. Pior: informações erradas ou imprecisas podem espalhar-se rapidamente pela rede que interligará todos os bancos de dados que guardam partes distintas de sua vida pessoal ou profissional. Para se ter uma noção da periculosidade dessa idéia, quando foi proposta na Austrália há mais de dez anos, o governo de lá foi derrubado por insistir na sua implementação.

Como destacou a revista britânica The Economist em recente matéria de capa, "as novas tecnologias da informação oferecem imensos benefícios – alta produtividade, mais prevenção ao crime, melhora no atendimento médico, diversão interativa, conveniências burocráticas. Mas vêm com um preço alto: menos e menos privacidade. Quando colocam em uso essas tecnologias, governos e companhias privadas repetem à exaustão o belo e convincente discurso sobre os benefícios que elas trazem. Mas e a privacidade onde fica? A resposta geralmente cai no mesmo bordão: "Quem não deve não teme." A verdade não é tão simples assim. "A maioria das pessoas concorda em dar alguma informação sobre elas mesmas para poder votar, trabalhar, comprar, fechar um negócio, sociabilizar ou mesmo emprestar um livro de uma biblioteca. Mas exercer o controle sobre quem sabe o que sobre sua vida também tem sido uma característica essencial de uma sociedade civilizada", defende a The Economist. E essa é justamente a razão para temer o poder que um governo terá com a posse de tamanho banco de dados unificado de todos os cidadãos. Uma idéia que remete ao "Grande Irmão", que observa a tudo e a todos no clássico de de George Orwell, 1984.

Repúdio – Em todos os países democráticos em que a idéia do número único foi proposta, acabou rejeitada diante dessa perspectiva tenebrosa da ampliação do controle estatal – e do vazamento para o setor privado. Nos EUA, isso aconteceu ainda nos anos 60, quando órgãos do governo quiseram tornar o número do seguro social um documento único para todos os fins. Já naquela época, temia-se o poder invasivo e manipulador da privacidade que a computação daria ao Estado e à iniciativa privada. Alan Westin, então um respeitado jurista, chegou a escrever um livro sobre o assunto, Privacy and freedom, de 1967. A obra foi resultado de discussões de uma comissão bancada pela American Bar Association (a Ordem dos Advogados de lá). Nele, Westin diz: "A ameaça à privacidade nasce de artefatos que não são nada estranhos à sociedade: microfones, gravadores portáteis, câmeras de alta resolução e registros eletrônicos governamentais." Não é de se estranhar, portanto, que 30 anos mais tarde o brasileiro seja obrigado a se deixar fotografar, ter sua identidade fotocopiada e contar um pouco de sua intimidade – telefone, endereço, etc. – para só depois ser autorizado a entrar em prédios comerciais nas grandes capitais.

Sem o direito de tapar os olhos curiosos e inoportunos tanto do governo quanto do resto da sociedade, o cidadão acaba perdendo também outras liberdades políticas e civis. Hoje, segundo os especialistas, a maioria das pessoas nas sociedades ricas assume que, desde que obedeçam à lei, tem o direito de desfrutar a privacidade tanto quanto quiser. "Elas estão erradas", avalia a The Economist. Apesar de todas as leis, tratados e direitos constitucionais, a privacidade tem sido erodida há décadas. Tal tendência, hoje, parece estar se acelerando bastante. Talvez a dificuldade esteja em definir o que seja privacidade. Segundo o estudo de Westin, "o desejo de privacidade é pouco entendido, embora muito valorizado". O conceito, no rigor técnico, tem ingredientes filosóficos, alguma coisa semântica e muita dose passional. Diz Westin: privacidade é desejo de indivíduos, grupos ou instituições de determinar para si mesmos quando, como e que tipo de informação sobre eles mesmos pode ser revelado a outros. Visto em termos da relação de um único indivíduo com a sociedade, seria o afastamento, o retiro voluntário e temporário, seja através de um meio físico ou mesmo espiritual. Pode também ser uma condição de anonimato ou reserva. No entanto, a privacidade nunca é absoluta, já que existe na natureza humana uma vontade, às vezes irresistível, de participar do coletivo, de aparecer perante os outros – lembre-se dos que fazem questão de mostrar em vídeo o parto de seus filhos. Assim, concluem os sociólogos, cada pessoa está continuamente engajada num processo de ajuste íntimo, no qual balançam os desejos de privacidade com o de publicidade. É normal, portanto, que haja confusão e mesmo choque diante de uma invasão inesperada.

 

Me deixem só – A causa desse choque, o desenvolvimento tecnológico, é a mesma que tornou famosa uma frase de protesto do juiz da Suprema Corte dos EUA, Louis Brandeis, ainda nos idos de 1890 – "todos têm o direito de ficar sozinhos". Há mais de um século, a ameaça estava na recém-desenvolvida fotografia e no barateamento da impressão. Hoje, está no poder de processamento do computador. O que assusta é a capacidade de se obter e disseminar eletronicamente qualquer informação sobre qualquer pessoa. Será que nesse passo teremos alguma privacidade para proteger dentro de 20 anos?

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Aí vem a pergunta: se em outros países a reação e a oposição a esse número único foram tão fortes, por que aqui nem sequer se debateu publicamente a idéia? Segundo o senador Pedro Simon (PMDB-RS), autor do projeto que virou lei, "ninguém se opôs à idéia". No entanto, consta dos anais da Câmara discurso feito em 1977 pelo então deputado José Roberto Faria Lima, alertando já naquele tempo para os riscos de uma lei como essa. "Alemanha, França, Itália, EUA, Japão, Austrália e Inglaterra disseram não a essa tese", declarou o político em discurso no plenário. "O preço da otimização administrativa seria muito caro: a liberdade do cidadão e o sacrifício da democracia", repete ele hoje. Mas, mesmo confrontado com essa forte reação observada lá fora, o senador Simon é categórico na sua defesa: "Só os ultraliberais é que são contra, mas a verdade é que quem não deve não teme", diz ele. E amplia sua justificativa com o argumento de que, se essa identidade única já existisse, "não haveria laranjas enviando dólares ilegalmente ao Exterior".

 

Inversão de valor – É claro que o senador se equivoca ao inverter valores. Não podem ser punidos todos para pegar alguns. Como diz o advogado Antonio Corrêa Meier, que já foi secretário de Segurança do governo paulista e hoje faz parte da direção da OAB: "Quanto menor a eficiência do Estado, maior o ônus que ele quer impor ao cidadão." No entanto, ele admite que a própria OAB, tão atuante politicamente no regime militar, ignorou a discussão de uma proposta de lei tão nefasta. "Infelizmente, não tivemos nenhuma participação nisso." Porém, a Ordem não está sozinha nessa ausência cívica. O meio acadêmico também desconhecia a existência da lei. Laymert Garcia dos Santos, sociólogo e doutor em ciência da informação pela Universidade Paris 7, e professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciência da Unicamp, lamenta não ter tido conhecimento e oportunidade de discutir o que agora é lei.

"Todas as questões associadas à tecnologia são não-questões no Brasil", aponta Laymert, usando um jargão próprio de seu meio. "Os efeitos colaterais da tecnologia não são levados em conta", acusa. E ao apontar a frase do pensador francês Paul Virillo, "toda nova tecnologia cria acidentes", Laymert lembra que a ausência de cidadania na cultura brasileira amplia o grau desses acidentes. "Lamentavelmente, não estamos acostumados a discutir as consequências do emprego de determinadas tecnologias. Nossas elites as recebem de braços abertos, sem nenhuma reflexão."

 

Preço a pagar? – De acordo com a Privacy International, uma organização não-governamental com representantes em 40 países, "a existência do histórico de vida de pessoas em centenas de bancos de dados, necessariamente não relacionados, é uma condição importante de proteção da privacidade. Mas, quando se reúnem esses dados em uma rede interligada, você torna essa proteção absolutamente vulnerável". Opinião que corrobora um relatório produzido há dois anos pelo governo britânico: "Para que um esquema de identidade única funcione, será necessário criar um banco de dados nacional. Isso significa dizer que os vários departamentos do governo poderão colher, transferir e guardar informações sobre o cidadão de uma forma muito mais fácil do que hoje. O que aumenta muito o risco de que a informação seja usada fora do contexto em que foi colhida. Decisões serão tomadas sobre você com base em dados imprecisos, irrelevantes ou incompletos. E, uma vez que o erro é cometido, ele pode se repetir várias vezes", alerta o relatório, invalidando a argumentação de que, se você é inocente, não tem nada a temer.

É fácil perceber o descaso brasileiro com o assunto. Se você for à Internet e fizer uma pesquisa com a palavra inglesa privacy, terá acesso a mais de uma centena de documentos e estudos. Se, porém, digitar "privacidade" as indicações referem-se apenas a motéis e hotéis que garantem outro tipo de intimidade a seus hóspedes. Nada sobre direitos do cidadão. De acordo com o professor americano David Banisar, diretor de um conceituado centro de pesquisa em Washington, o impulso autoritário não é o único motivo para a expansão tecnológica da informação. "A simples necessidade de aumentar a eficiência burocrática, que sofre com os cortes nos orçamentos, é a força por trás dessa vontade de aumentar a identidade e monitorar os indivíduos." A coleta de impressões digitais, o uso de carteiras de identidade, o cruzamento de dados e outros esquemas de controle são inicialmente tentados em populações com pouco poder político, como aposentados, imigrantes, criminosos e militares, segundo Banisar. "Depois, passam para esferas sociais mais altas. Implementados, são difíceis de remover e inevitavelmente se expandem. Enfim, corporações privadas se adaptam rapidamente a essas tecnologias com o objetivo de atingir consumidores, manipular mercados, além de selecionar, monitorar e controlar empregados."

 

Frutos da guerra fria – Em um artigo sobre o assunto, Big brother goes high-tech (O Grande Irmão chega à alta tecnologia), Banisar lembra outra observação feita pelo famoso Brandeis em 1928 quando já presidia a Suprema Corte dos EUA: "Meios de invasão de privacidade mais sutis e de maior alcance estão ficando disponíveis ao governo. Descobertas e invenções tornaram possível, por meios mais efetivos do que a tortura, obter revelações nos tribunais que antes eram apenas sussurradas entre quatro paredes." Hoje, observa Banisar, o juiz Brandeis ficaria estarrecido com o arsenal que existe para que governos e empresas penetrem nos cantos mais íntimos da vida do cidadão. "O fim da guerra fria e a demanda por eficiência burocrática estão promovendo uma teia impecável de vigilância, que vai do berço ao túmulo, da conta bancária ao quarto de dormir. Novas tecnologias desenvolvidas com fins bélicos estão se espalhando pelos agentes da lei, agências civis e companhias privadas. Ao mesmo tempo, leis defasadas se tornaram ineficientes para policiar os abusos", alerta o autor.


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