Depois de dois romances de talento, mas de qualidade apenas correta – Uma casa no fim do mundo e Laços de sangue –, Michael Cunningham, escritor americano radicado em Nova York, oferece uma pequena jóia a seus leitores. As horas (Companhia das Letras, 180 págs., R$ 21), merecidamente contemplado com o Pulitzer e o PEN/Faulkner Award, os dois mais importantes prêmios literários americanos, é, antes de tudo, um longo diálogo com uma das mais importantes vozes da literatura moderna, a escritora Virginia Woolf. A começar pelo título, o mesmo imaginado por Virginia para o célebre romance Mrs. Dalloway, de 1925, para muitos sua obra-prima, escrito dois anos antes, num período em que se tentava recuperar dos problemas mentais que a levariam ao suicídio, em 1941.

O romance de Cunningham parte dos preparativos desse suicídio, com Virginia, transformada em personagem, saindo de casa apressada, recolhendo pedras pelo caminho para se atirar no rio Ouse. Cunningham, porém, não se limita à ousadia de convertê-la em personagem. Ele a divide em três: a americana Laura, mulher de um herói de guerra, que leva uma vida monótona num subúrbio em Los Angeles, em 1941; Clarissa, uma editora bem-sucedida, cinquentona, lésbica, bem casada, que prepara uma festa em homenagem a um poeta amigo que está morrendo de Aids; e, finalmente, a própria Virgina Woolf.

Tripartida, Virginia cresce não só como mulher, mas como escritora. Na verdade, ela não sofria só dos nervos ou da mente, mas do mundo. Foi a sensação de hipersensibilidade e seu correlato, um grande estranhamento, que fizeram dela uma mulher – uma escritora fabulosa – que parecia pairar alguns passos acima de todos nós. Gay assumido, Cunningham conhece essa sensação de deslocamento sutil, como se o mundo se passasse, sempre, algumas polegadas à margem de si. Nesse ponto, já havia, bem antes de As horas, um elo entre ele e Virginia. O autor parece ter escrito As horas para exercitar e exibir uma filiação e uma dívida. Ergue-se ao lado de Virginia e se apresenta como seu descendente. E nos convence disso.